domingo, 16 de julho de 2023

Luiz Sérgio Henriques* - Praga e Brasília – de um século a outro

O Estado de S. Paulo

As coisas humanas são, todas elas, relativas, mas não há lugar para sofisma sobre a vida em democracia

Em tempos de invasão e guerra, cabe recuar brevemente ao emblemático ano de 1968, quando, para manter intacto o “campo socialista”, a então URSS e o seu Pacto de Varsóvia puseram fim à experiência do “socialismo de rosto humano” na Checoslováquia de Alexander Dubcek, um antecessor distante de Mikhail Gorbachev. As repercussões na esquerda global foram enormes, estimularam heresias e consolidaram conformismos, sacudiram certezas e, naturalmente, desembarcaram no Brasil.

Era também um tempo de manifestos, a exemplo do que reuniu intelectuais ligados ao antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB) – como Ênio Silveira e Moacyr Félix, responsáveis pela histórica revista Civilização Brasileira, que estampou o documento em número especial – e muitos outros que não o eram, como, entre os vivos, Affonso Romano de Sant’Anna e Bolívar Lamounier, com impecáveis credenciais. O que os unia era a defesa da “Primavera de Praga” e da autodeterminação dos povos contra a brutalidade dos invasores.

O partidão, ligado umbilicalmente à URSS, revelava uma vez mais a ambiguidade da sua posição internacional. Defendia com bravura uma resistência inteiramente política ao regime de exceção brasileiro, aliás, às vésperas do AI-5; no entanto, solidarizava-se com atos de força no seu próprio campo, exceção feita aos seus filiados que firmaram o manifesto, heréticos que, ao lado de militantes e dirigentes minoritários, não conseguiram reformar sua igreja. Uma ambiguidade que Hélio Jaguaribe iria caracterizar, em outra circunstância, como derivada da associação entre uma política que podia ser razoável e uma péssima teoria (o marxismo-leninismo de extração stalinista).

Mudam-se os tempos, nem tão rapidamente assim mudam-se as vontades. A ambiguidade detectada por Jaguaribe parece repor-se de outras formas e em novos contextos, sem dar sinais de querer sumir de uma vez e para sempre. Ainda no ano passado ficou à vista de todos que, sem uma ampla frente, não seria possível vencer a ameaça representada pelo segundo mandato do então presidente, a mais perfeita tradução nacional dos autocratas eleitoralmente competitivos que têm corroído por dentro as democracias. Uma ameaça que tomaria feições dramáticas no dia 8 de janeiro, quando se encenou um ato supostamente revolucionário de assalto aos palácios do poder.

A reação conjunta dos democratas, em defesa das instituições e do mandato do presidente legitimamente eleito, não deixou dúvida sobre o caminho a seguir, baseado na combinação permanente entre mudança social e democracia política, entre reformas e busca de consenso segundo a definição constitucional. Num país reencontrado consigo mesmo, as disputas e os conflitos deveriam voltar a ter como pressuposto o cancelamento da noção autoritária de “inimigo interno”. As coisas humanas são, todas elas, relativas, mas não há lugar para sofisma sobre a vida em democracia, que confere plena dignidade a todos os que aceitam as regras do jogo.

Assim pacificados, é natural querer projetar para fora este e outros valores. A autodeterminação dos povos ou a soberania dos Estados são dimensões a que nos curvamos, especialmente no caso de tentativas de anexação territorial e agressões injustificadas, como as que temos visto na Ucrânia ou na Palestina. A elas, contudo, acrescentam-se modernamente, ao menos desde o segundo pós-guerra, outros valores igualmente universais. Os direitos humanos, tal como consagrados na Carta das Nações Unidas, expressam um ponto alto de acordo entre Estados e povos no rastro de uma tragédia que não excluiu o horror absoluto do genocídio e dos campos de concentração. Por isso, são ideias reguladoras inegociáveis, e não índices de “decadência civilizacional”, como tornam a afirmar os autocratas.

Não há mais – ou não deveria haver – a necessidade de uma “escolha de campo” que justifique a retomada da ambiguidade do velho comunismo. Estados se relacionam soberanamente, mas partidos e movimentos sociais – bem como intelectuais que os animam – atuam com liberdade, à maneira de uma atenta e exigente sociedade civil global. São, também, protagonistas de uma pedagogia sem a qual a vida cívica definha, sufocada pelo descolamento entre intenção e gesto, entre ideologia afirmada e prática efetiva. A sensação de hipocrisia que decorre de tal descolamento terá sido a causa – é o que dizem cientistas sociais e ficcionistas, estes historiadores implacáveis da alma das sociedades – para a generalização da apatia e da indiferença no antigo socialismo real e nas experiências autoritárias que dizem lhe suceder no século 21.

No caso brasileiro, a vingar a hipocrisia política, ela previsivelmente reacenderá o espírito subversivo da extrema direita, que vagou entre nós por quatro longos anos com um apoio de massas cujas razões ainda não compreendemos em profundidade. Uma coisa é certa: equívocos e lacunas no campo democrático não foram poucos nem superficiais. Para saná-los, entre outros requisitos, só o pleno e cabal encontro entre esquerda e democracia política, interna e externamente. Uma lição já assimilada?

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil

Um comentário: