O Estado de S. Paulo
As coisas humanas são, todas elas,
relativas, mas não há lugar para sofisma sobre a vida em democracia
Em tempos de invasão e guerra, cabe recuar
brevemente ao emblemático ano de 1968, quando, para manter intacto o “campo
socialista”, a então URSS e o seu Pacto de Varsóvia puseram fim à experiência
do “socialismo de rosto humano” na Checoslováquia de Alexander Dubcek, um antecessor
distante de Mikhail Gorbachev. As repercussões na esquerda global foram
enormes, estimularam heresias e consolidaram conformismos, sacudiram certezas
e, naturalmente, desembarcaram no Brasil.
Era também um tempo de manifestos, a exemplo do que reuniu intelectuais ligados ao antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB) – como Ênio Silveira e Moacyr Félix, responsáveis pela histórica revista Civilização Brasileira, que estampou o documento em número especial – e muitos outros que não o eram, como, entre os vivos, Affonso Romano de Sant’Anna e Bolívar Lamounier, com impecáveis credenciais. O que os unia era a defesa da “Primavera de Praga” e da autodeterminação dos povos contra a brutalidade dos invasores.
O partidão, ligado umbilicalmente à URSS, revelava uma vez mais a ambiguidade da sua posição internacional. Defendia com bravura uma resistência inteiramente política ao regime de exceção brasileiro, aliás, às vésperas do AI-5; no entanto, solidarizava-se com atos de força no seu próprio campo, exceção feita aos seus filiados que firmaram o manifesto, heréticos que, ao lado de militantes e dirigentes minoritários, não conseguiram reformar sua igreja. Uma ambiguidade que Hélio Jaguaribe iria caracterizar, em outra circunstância, como derivada da associação entre uma política que podia ser razoável e uma péssima teoria (o marxismo-leninismo de extração stalinista).
Mudam-se os tempos, nem tão rapidamente
assim mudam-se as vontades. A ambiguidade detectada por Jaguaribe parece
repor-se de outras formas e em novos contextos, sem dar sinais de querer sumir
de uma vez e para sempre. Ainda no ano passado ficou à vista de todos que, sem
uma ampla frente, não seria possível vencer a ameaça representada pelo segundo
mandato do então presidente, a mais perfeita tradução nacional dos autocratas
eleitoralmente competitivos que têm corroído por dentro as democracias. Uma
ameaça que tomaria feições dramáticas no dia 8 de janeiro, quando se encenou um
ato supostamente revolucionário de assalto aos palácios do poder.
A reação conjunta dos democratas, em defesa
das instituições e do mandato do presidente legitimamente eleito, não deixou
dúvida sobre o caminho a seguir, baseado na combinação permanente entre mudança
social e democracia política, entre reformas e busca de consenso segundo a
definição constitucional. Num país reencontrado consigo mesmo, as disputas e os
conflitos deveriam voltar a ter como pressuposto o cancelamento da noção
autoritária de “inimigo interno”. As coisas humanas são, todas elas, relativas,
mas não há lugar para sofisma sobre a vida em democracia, que confere plena
dignidade a todos os que aceitam as regras do jogo.
Assim pacificados, é natural querer
projetar para fora este e outros valores. A autodeterminação dos povos ou a
soberania dos Estados são dimensões a que nos curvamos, especialmente no caso
de tentativas de anexação territorial e agressões injustificadas, como as que
temos visto na Ucrânia ou na Palestina. A elas, contudo, acrescentam-se
modernamente, ao menos desde o segundo pós-guerra, outros valores igualmente
universais. Os direitos humanos, tal como consagrados na Carta das Nações
Unidas, expressam um ponto alto de acordo entre Estados e povos no rastro de
uma tragédia que não excluiu o horror absoluto do genocídio e dos campos de
concentração. Por isso, são ideias reguladoras inegociáveis, e não índices de
“decadência civilizacional”, como tornam a afirmar os autocratas.
Não há mais – ou não deveria haver – a
necessidade de uma “escolha de campo” que justifique a retomada da ambiguidade
do velho comunismo. Estados se relacionam soberanamente, mas partidos e
movimentos sociais – bem como intelectuais que os animam – atuam com liberdade,
à maneira de uma atenta e exigente sociedade civil global. São, também,
protagonistas de uma pedagogia sem a qual a vida cívica definha, sufocada pelo
descolamento entre intenção e gesto, entre ideologia afirmada e prática
efetiva. A sensação de hipocrisia que decorre de tal descolamento terá sido a
causa – é o que dizem cientistas sociais e ficcionistas, estes historiadores
implacáveis da alma das sociedades – para a generalização da apatia e da
indiferença no antigo socialismo real e nas experiências autoritárias que dizem
lhe suceder no século 21.
No caso brasileiro, a vingar a hipocrisia
política, ela previsivelmente reacenderá o espírito subversivo da extrema
direita, que vagou entre nós por quatro longos anos com um apoio de massas
cujas razões ainda não compreendemos em profundidade. Uma coisa é certa:
equívocos e lacunas no campo democrático não foram poucos nem superficiais.
Para saná-los, entre outros requisitos, só o pleno e cabal encontro entre
esquerda e democracia política, interna e externamente. Uma lição já
assimilada?
*Tradutor e ensaísta, é um dos
organizadores das obras de Gramsci no Brasil
Boa reflexão.
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