sexta-feira, 14 de julho de 2023

Marcelo de Azevedo Granato* - A tomada da consciência

O Estado de S. Paulo

Há quem aposte na melhora da economia ou nos reflexos do julgamento dos atos de 8/1 para contrastar o assalto à mente e à autodeterminação das pessoas. Aposta incerta

Pesquisa do Ipec divulgada em março pelo jornal O Globo revela que 44% da população concorda total ou parcialmente com a frase “o Brasil corre o risco de virar um país comunista”. Um pouco antes, em fevereiro deste ano, os repórteres Renata Cafardo e Tiago Queiroz, do Estadão, foram alvo de agressões e insultos enquanto cobriam a tragédia climática que desalojou e matou dezenas de pessoas no litoral norte de São Paulo, durante o carnaval. Foram tachados de “comunistas e esquerdistas” por bolsonaristas num condomínio de luxo de Maresias.

Não há como saber o que os entrevistados pelo Ipec ou os agressores dos repórteres entendem por comunismo. Certo é que, sob qualquer ponto de vista razoável e realista, a hipótese é uma miragem. Porém, mais intrigante do que a concepção dos entrevistados e dos agressores sobre o comunismo é o fato de parte deles acreditar genuinamente nessa ameaça e protestar incansavelmente contra ela, solicitando, inclusive, a ajuda do ex-presidente, como se viu em faixas de manifestantes em Brasília (“Bolsonaro, salve-nos do comunismo”).

E isso não se limita ao tema do comunismo. Vale também para as acusações de fraude nas urnas eletrônicas, de ineficiência (ou coisa pior) das vacinas e para a imediata aceitação, por muitas dessas pessoas, de qualquer notícia proveniente de suas fontes – vide as comemorações ocorridas em aglomerações bolsonaristas no pós-eleição pela notícia da prisão do ministro do STF Alexandre de Moraes. Mais recentemente, esse descolamento da realidade comparece na tese da participação do governo Lula na destruição promovida na Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro deste ano.

A adesão a Bolsonaro vai muito além das pessoas de que se fala acima. No caso delas, porém, a impressão é de que sua adesão convicta a afirmações, temas e chamados bolsonaristas não é decorrência de um convencimento caso a caso ou, simplesmente, de uma visão ideológica ou de mundo ajustada à bolsonarista. Afinal, tal adesão se dá, sempre, diante de afirmações ou argumentos bastante inverossímeis/inconvincentes (fora do ambiente digital a que pertencem) e gera comportamentos acima de heterodoxos, como se viu seja no 8 de janeiro, seja na invasão a hospitais para denunciar a “farsa” da epidemia de covid-19, seja na agressão a “jornalistas comunistas”. Trata-se, ao que parece, de uma forma fixa de consideração e entendimento da realidade; uma forma mentis.

É como se a mensagem bolsonarista tivesse atravessado o campo (circunstancial, mutável, controverso) do convencimento e da opinião e atingido a própria consciência daquelas pessoas; como se tanto a percepção do mundo quanto a autodeterminação delas seguisse sempre a cartilha bolsonarista, mesmo quando ela toma grande distância da realidade ou do senso comum. Uma espécie de apoderamento, pela mensagem bolsonarista, da espontaneidade mais íntima delas. Faz lembrar a frase de Donald Trump de janeiro de 2016: “Eu poderia parar no meio da Quinta Avenida, atirar em alguém, e não perderia nenhum eleitor”.

Daí que as divergências nascidas num tal ambiente não giram em torno de argumentos, estratégias, persuasão. Elas giram em torno da própria realidade (da ameaça comunista, da eficácia das vacinas contra a covid-19, da fraude nas urnas eletrônicas, da “ideologização” das crianças). Quem planta desinformação, desconfiança, desorientação devasta o solo onde sempre negociamos, concordamos e discordamos sobre questões públicas. E um dos principais objetivos de quem promove isso é nos fazer perguntar como uma democracia pode funcionar nesse cenário, para daí nos levar a concluir que, nele, nem vale a pena termos uma democracia. Mais fácil deixar as decisões na mão do “mito” da vez.

De braços dados com o apagamento do senso comum caminha a desmoralização ou deslegitimação de pessoas e instituições. Não importava, aos que atacaram os jornalistas do Estadão em Maresias, o que eles estavam fazendo lá, isto é, trabalhando. Importava que eram “comunistas”.

Algo semelhante se dá nas acusações voltadas a políticos de oposição a Jair Bolsonaro. A Lula, por exemplo, já foram atribuídos a futura implantação do comunismo no País, o fechamento de igrejas e uma “relação com o demônio” (em vídeo manipulado). O efeito que se busca nesse caso é desacreditar, deslegitimar o personagem político. É, também, por isso que tantos fazem vista grossa para o rol de impropérios, ilegalidades e perversidades cometidos por Bolsonaro. Afinal, qualquer rastejador moral seria melhor do que alguém que tem elo com o comunismo, o PCC, ou o demônio, não?

Há quem aposte na melhora da economia ou nos reflexos do julgamento dos atos de 8 de janeiro para contrastar este assalto à mente e à autodeterminação das pessoas de que se fala aqui. É uma aposta incerta. A mensagem bolsonarista conquista adesões que se assentam profundamente, para além do debate econômico, dos costumes e da clivagem direita e esquerda. Não parece questão de convencimento, mas de consciência.

*Doutor em Direito pela Usp e pela Università Degli Studi di Torino, integrante do Instituto Norberto Bobbio, é professor da Fadi e Facamp

 

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