Valor Econômico
Nos próximos oito anos, o Brasil tem a
chance de baixar a temperatura da política
Pode ter sido coincidência, mas o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva escolheu o dia em que o Tribunal Superior
Eleitoral determinou a inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro para
visitar o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite.
Sugere mais do que uma tentativa de se
desvencilhar do desfecho e circunscrevê-lo a um fato do Judiciário, como mais
tarde diria. Ali parecia estar um ideal de futuro. Um presidente da República,
acompanhado da primeira-dama, Janja da Silva, sendo recebido pelo principal
governador do PSDB, acompanhado de seu marido, Thalis Bolzan. É como se o
Brasil pudesse entrar numa máquina do tempo e voltar à era da polarização,
agora entre o PT e um PSDB democrático e moderno.
Só que não. O PSDB elegeu três governadores - além de Leite, Raquel Lyra (PE) e Eduardo Riedel (MS) -, mas de tão espremido pelo bolsonarismo, nem candidato à Presidência da República conseguiu ter em 2022. A repetir o vexame de 2018, quando o atual vice-presidente Geraldo Alckmin não chegou a 5% dos votos, preferiu indicar a senadora Mara Gabrilli (SP) para vice da então senadora do MDB, hoje ministra do Planejamento, Simone Tebet, para obter uma votação ainda menor.
Ainda restam outras 15 ações contra o
ex-presidente no TSE a reforçar a inelegibilidade
A inelegibilidade do ex-presidente não
ressuscitará, subitamente, a centro-direita democrática do país, mas a
sobrevida da força eleitoral do bolsonarismo hoje é mais fruto do desejo do
entorno ainda desnorteado do ex-presidente do que uma perspectiva real. Se a
base do bolsonarismo radical encontra-se cercada em seus extremismos golpistas
pela ação do Judiciário, a base política que sustentou seus quatro anos no
Congresso está, paulatinamente, sendo atraída pela força da gravidade do
governismo, vide a celeridade com que tramitam arcabouço fiscal e reforma
tributária.
Com o ex-presidente, a extrema-direita teve
seu único sucesso eleitoral. A direita e uma parte do centro pegaram carona no
rabo do foguete. Se o fôlego do bolsonarismo parece curto para dar tração ao
campo político que reuniu ao longo dos quatro anos, também se mostra duvidoso
para guardar a vaga de um retorno em 2030, quando Bolsonaro terá 75 anos, dois
a menos do que Lula hoje.
Durante seu voto, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, deu uma pista dos empecilhos a serem enfrentados pela arca dos bolsonaristas. Depois de fazer oito sucessivas menções à palavra “mentira” para se referir ao discurso de Bolsonaro no ato com os embaixadores no Palácio do Alvorada, que levou à sua inelegibilidade, Moraes deixou um recado sobre a trinca de penalidades que incidiriam sobre seu comportamento na campanha: cassação do registro da candidatura, inelegibilidade e prisão.
Referia-se aos dois acórdãos do TSE de 28
de outubro de 2021. Do primeiro, Bolsonaro escapou. Nenhum dos supostos crimes
eleitorais que motivaram as 16 ações de investigação judicial eleitoral foi
julgado durante a campanha, a despeito das infrações patentes, como o aumento
no valor do Bolsa Família para além do período vedado pela Justiça Eleitoral.
Optou-se por aguardar a manifestação do
eleitor, pelo déficit de legitimidade óbvio que uma decisão de sete votos tem
sobre 47 milhões de pessoas que acabaram por optar por Bolsonaro em outubro do
ano passado.
Ainda restam outras 15 ações contra o
ex-presidente no TSE a reforçar a inelegibilidade. E falta, ainda, o terceiro
desfecho, o da prisão, que não é tarefa daquele tribunal, mas, sim do outro, o
Supremo Tribunal Federal, que Moraes integra como relator do inquérito dos atos
antidemocráticos.
Se o julgamento do comportamento de
Bolsonaro como candidato foi conduzido com uma lupa sobre os riscos de
vitimizá-lo, mais ainda o é a condução do inquérito que pode levá-lo à prisão.
Além de Moraes, a ministra Cármen Lúcia sinalizou, muito sutilmente, no
julgamento, como os processos criminais pelos quais o ex-presidente responde
podem mantê-lo longe das urnas para além do prazo de oito anos de
inelegibilidade.
Foi quando fez referência ao advogado
Sepúlveda Pertence, morto nesse domingo, aos 85 anos. Ele era presidente do
Tribunal Superior Eleitoral pela segunda vez, em 2004, quando o fazendeiro
Antério Mânica foi eleito prefeito de Unaí (MG). Pesava contra si a morte de
três fiscais do trabalho e um motorista no início daquele ano, no que ficou
conhecida como a “Chacina de Unaí”. Ele estava na cadeia quando foi preso.
“Foi eleito, será diplomado e empossado”,
disse Pertence. Sua condenação, por júri popular, só se daria 12 anos depois
quando Mânica já tinha exercido dois mandatos como prefeito. Em 2015, recebeu
do júri a pena de 100 anos de prisão. O caso mobilizou a sociedade para o
recolhimento de mais de 1,5 milhão de assinaturas e apresentação do projeto de
lei de iniciativa popular da Ficha Limpa. Cármen Lúcia o citou como exemplo de
como a Corte não tinha por tradição se afastar do cumprimento do direito e como
menção oculta ao que ainda está por vir.
A contenção da extrema direita, porém, será
tanto mais eficaz - e legítima - quanto for operada pela política. A
contundência de Alexandre de Moraes, sugere que o Judiciário continuará
embandeirado na defesa da democracia (“A resposta que este tribunal dará a esta
questão confirmará nossa fé na democracia e no estado de direito, repulsa ao
populismo renascido dos discursos de ódio, antidemocráticos que propagam
desinformação por milicianos digitais em todo mundo”) na condução do inquérito
do STF. Mas a tarefa principal cabe à direita democrática e àqueles que hoje estão
no poder.
E Lula? Comete, no tema, os mesmos deslizes
a 40 anos como o fez ao relativizar o conceito de democracia na Venezuela. Fora
do teatro da política ninguém leva a sério o descompromisso de Lula com a
democracia, ainda mais depois de ele ter sido o único a se apresentar em
condições de salvá-la em 2022. Não parece muito claro, porém, o que o
presidente ganha com isso. Bem mais evidente é o que perde. Se não duela mais
com Bolsonaro, visto que ele está fora do jogo, pode dar munição para quem faz carreira
na política no antilulismo.
É verdade que as chances de Lula amealhar uma fatia do bolsonarismo dependem, primordialmente, do seu governo. É a partir dele que pode atrair até a centro-direita que esteve com Bolsonaro. Mas, a partir de agora, e por oito anos, o Brasil tem chance de baixar a temperatura da política e devolvê-la à mediação transparente, democrática e serena do conflito de interesses. E o exemplo maior, para isso, é de quem está no poder.
Quem fala a verdade não merece castigo.
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