O Globo
Tudo o que temos celebrado no Prêmio Faz
Diferença esteve sob ataque. Por isso, a festa deste ano teve uma alegria calma
e sensação de alívio
O líder indígena Ailton Krenak entrou no
salão do Copacabana Palace, quando ainda estava quase vazio. Abriu um sorriso
ao ver Milton Nascimento. Sentou-se do lado dele, e os dois encostaram suas
cabeças uma na outra e cantaram baixinho uma música de “Txai”, o álbum de
Milton dedicado aos indígenas. Ao fim da cerimônia, duas jovens foram dizer a
Ailton o quanto o admiravam. Eram as filhas da cientista Mercedes Bustamante.
Krenak me disse baixinho. “A geração Greta entendeu”.
É privilégio ver cenas assim dos bastidores do prêmio que há vinte anos este jornal entrega a pessoas e instituições que, por uma luta, uma superação, uma história de vida, uma causa, melhoram o país. Nós, jornalistas, somos céticos por dever de ofício. Temos que duvidar para começar a entender qualquer matéria. O prêmio Faz Diferença é um saudável exercício de buscar, em cada editoria, o que deu certo, o que é bom, generoso, transformador.
O Brasil passou por muitos solavancos nas
duas décadas em que o prêmio existe. Nos últimos quatro anos, foi exposto à
exibição grotesca de antivalores. Falas diárias de pessoas em posição de poder
subestimaram a ciência, a educação, os indígenas, os negros, as mulheres, a
floresta, a democracia. Tudo o que temos celebrado esteve sob ataque. O ano de
2022 representou a esperança de estancar essa demolição. A festa tinha,
portanto, uma alegria calma, uma sensação de alívio.
As enfermeiras do Hospital Heloneida
Studart chegaram lá com orgulho. “Nós o paramos”, disse Maria Aparecida de
Jesus se referindo ao médico abusador de pacientes. Os Skank fizeram uma bela
turnê de despedida. A publicitária Luciana Capobianco ajuda refugiados. A atriz
Isabel Teixeira lembrou que o protagonista da novela premiada era um bioma
brasileiro, o Pantanal. O uso eficiente da tecnologia na educação é bandeira de
Vilma Guimarães. A Flip espalhou, para além de Paraty, a alegria das festas
literárias. O grupo Soma, de moda, também investe nas periferias. O jovem
Daniel Dreifuss foi fazer cinema em todos os fronts. As histórias boas eram
levadas ao palco sempre ao som de alguma música do Milton. Mercedes Bustamante
e sua defesa do Cerrado. Edmar Bacha, combatente da estabilidade econômica,
representou os economistas do Real que levantaram a voz na defesa da
democracia. Não foram, mas enviaram mensagens a cantora Linn da Quebrada e a
skatista Rayssa Leal, que cresce sobre rodas, avisando que as meninas podem
tudo. Luiza Brunet foi lá fortalecer as mulheres que enfrentam agressores.
Ailton Krenak celebrou a festa em si, “depois de tanto luto”. Milton lembrou
Guimarães Rosa, mineiro como Ailton, como Skank, como Bacha, ao dizer que o
importante na vida é a travessia.
Lembrei, no roteiro, que Milton foi guia em
tantas travessias que temos feito no Brasil. Contra a ditadura, no entendimento
da força da mulher, no respeito aos indígenas, na luta contra o racismo, no
trem das nossas vidas. Sobretudo, na busca das raízes da nossa música.
Ailton Krenak, pessoa do meu vale do rio
Doce, é também filósofo. No seu livro, “Futuro ancestral”, ele fala dos rios. E
do seu Watu. Sua visão não é amarga e é sempre capaz de iluminar novos ângulos
da realidade. “Quando penso no Watu, percebo sua potência: um curso d’água de
superfície que, ao sofrer uma agressão teve a capacidade de mergulhar na terra
em busca dos lençóis freáticos profundos e refazer sua trajetória. Assim ele
nos ensina a evitar um dano maior”, escreveu. A mensagem é que, depois das
dores, é preciso mergulhar na terra para se reconstruir.
O correr da vida embrulha tudo, dizia
Guimarães Rosa. Eu apresentava o prêmio lembrando os que subiram naquele palco,
em vinte anos. Zilda Arns, José Mindlin, Zé Celso Martinez Corrêa, Gal, Jô,
Bibi Ferreira, tanta gente linda. Então aconteceu o que eu não esperava. O
diretor de redação Alan Gripp pediu para falar no meio da cerimônia e fez uma
homenagem surpresa a Ancelmo Gois e a mim, apresentadores do prêmio desde o
primeiro. Eu o ouvia falando e nem entendia. Vi a plateia aplaudir, recebi o
abraço carinhoso de Flávia Oliveira, peguei o troféu, mas não entendia.
Quando voltava para casa, em silêncio, no
fim dessa noite de emoção, quis contar o acontecido à jovem que um dia fui. Se
fosse possível essa volta no tempo eu diria àquela jovem que a democracia é
valor da vida toda e, sim, é uma luta que vale a pena lutar.
Excelente artigo da colunista.
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