Folha de S. Paulo
Uma razão acima de provas, eis o elo entre
o rei e o autocrata
Vale cotejar no streaming o sul-coreano
"A Fortaleza" com um fenômeno político atual: o sumiço de oligarcas e
líderes militares na Rússia.
O filme encena a monarquia coreana às voltas com a temível invasão da dinastia chinesa Qing. O rei pondera os conselhos, em geral
divergentes, de seus ministros. Erros são corrigidos por protocolo elementar: o
monarca oferece a si próprio a cabeça cortada do mau conselheiro, militar ou
civil.
Tudo isso transcorre no século 17, mas o feroz absolutismo real fornece
material presente para uma analogia com o autocratismo homicida de Putin. O importante Sergei Surovikin, notório pelo sinistro epíteto de
"General Armagedon", não é visto desde o fim da rebelião dos
mercenários. Somem comandantes, milionários despencam de edifícios. O Kremlin
opera a todo vapor no modo delete.
Uma razão acima de provas, eis o elo entre
o rei e o autocrata. A dissociação iliberal entre Estado e sociedade (72% dos
países são autocracias) favorece idos desvarios imperiais. Com Putin, o
neoczarismo pan-eslavo, miasma dos escombros da ideologia soviética. O
chinês Xi Jinping, arremedo de imperador confuciano-maoísta, prospera
no sonho geopolítico de hegemonia mundial. Ultradireitistas sufocam a
democracia para perpetuar-se como autocratas dinásticos: o bielorrusso Lukashenko, parceiro de Putin, está há 19 anos no poder.
Ortega e Maduro disputam recordes de permanência.
Analistas políticos parecem indiferentes à natureza conceitual dessas
dissonâncias regressivas na troca do velho golpe de Estado por um permanente
estado de golpe, em que a extrema direita se absorve no supremacismo
ditatorial.
Quando se fala em monarquia, a referência, soft, é a Grã-Bretanha, talvez pelo
fausto da coroação, talvez porque a família real esteja mais viva na mídia do
que no real-histórico. No entanto, é vital precaver-se democraticamente contra
o resquício absolutista de forças maléficas que, no bojo do grande capital,
estruturam a condição humana ao revés da razoabilidade.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
Sim.
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