sexta-feira, 14 de julho de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Redução da desigualdade na educação deve ser premiada

Valor Econômico

MEC põe em debate regra que premia municípios que conseguem diminuir desigualdades socioeconômica e racial

Em dezembro de 2020, a Câmara dos Deputados aprovou o que ficou sendo chamado de o novo Fundeb. O Fundeb é o fundo formado por uma fatia da arrecadação de Estados e municípios para custear a educação básica no país - que abarca educação infantil, ensino fundamental e médio. A União aporta recursos complementares. A lei inovou em um ponto que, na época, gerou divergências: premiar quem vai melhor. Três anos depois, esse tema alimenta novamente debate entre especialistas em educação e entidades do setor que vêm sendo ouvidas pelo Ministério da Educação (MEC).

Pela regra aprovada em 2020, uma parcela dos recursos do novo Fundeb passaria a ser repassada apenas a municípios que cumprissem cinco exigências. Essa parcela de recursos começou a ser repassada este ano. O mecanismo tem o nome de Valor Aluno Ano por Resultados (VAAR). Neste primeiro ano, o valor repasssado é de R$ 1,7 bilhão e até 2026 deverá chegar a quase R$ 6 bilhões.

Quatro das exigências para o pagamento do VAAR têm a ver com gestão: adoção de critérios técnicos (e não indicações político-partidárias) para indicação de diretoras e diretores de escolas; garantia de que pelo menos 80% de seus alunos compareçam às provas que avaliam a educação básica; alinhamento dos currículos à Base Nacional Comum Curricular (BNCC); e aprovação de legislação estadual que estabeleça o chamado ICMS educacional.

A quinta exigência tem a ver com desigualdade e é a mais complexa. O texto aprovado por deputados e senadores em 2020 estabelece no terceiro item do inciso 1º do artigo 14 da lei 14.113/2020 esta exigência: “Redução das desigualdades educacionais socioeconômicas e raciais medidas nos exames nacionais do sistema nacional de avaliação da educação básica, respeitadas as especificidades da educação escolar indígena e suas realidades”. Esse é o ponto que alimentou polêmicas em 2020 e que volta agora a gerar discussões.

A tese vencedora três anos atrás no Congresso foi que era relevante premiar, com mais dinheiro, redes públicas que conseguissem melhorar na educação reduzindo desigualdades.

Qual é a importância desse critério? Um exemplo que vale de Norte a Sul do Brasil: parte dos alunos de uma escola será alfabetizada até o segundo ano do ensino fundamental, apreenderá os conceitos básicos da matemática, não repetirá de ano e não deixará de frequentar as aulas. Mas parte dos alunos não conseguirá nada disso e tenderá a engrossar a massa da população com baixíssima qualificação profissional e baixíssima produtividade.

Eis o desafio das redes públicas: garantir que alunos que estejam nesse grupo, de mais dificuldades, melhorem seu nível de aprendizagem, não repitam e não desistam de estudar. Redes que conseguem fazer isso (e que cumprem as quatro exigências de gestão) merecem, pelas regras atuais, uma transferência extra de recursos do Fundeb.

Mas dos 5.570 municípios do país, quantos cumpriram as cinco condicionalidades e se habilitaram a receber em 2023 a fatia do Fundeb enquadrada no VAAR? Apenas 1.923, segundo o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). E entre os municípios que não se habilitaram, 2.738 não o fizeram por não terem conseguido cumprir essa condicionalidade da redução das desigualdades. Muitos são pequenos municípios. Mas São Paulo, Belo Horizonte e Belém também aparecem na lista.

Nas últimas semanas, um grupo no MEC tem feito discussões e ouvido especialistas em educação e entidades do setor sobre eventuais ajustes em alguns pontos do Fundeb. Essa reavaliação em 2023 faz parte do cronograma da legislação. O VAAR é um dos pontos centrais dos debates.

Um ponto é que redução de desigualdade socioeconômica e racial deve ser um resultado a ser alcançado e não uma condição para que prefeituras recebam uma parcela extra do Fundeb. E que reduzir desigualdades é um desafio que extrapola as capacidades da escola e das secretarias.

Defensores da regra atual - redução da desigualdade como condição para repasses - dizem que se trata de um incentivo correto e que há, sim, muitas medidas que reduzem desigualdade no âmbito da educação que merecem ser estimuladas com mais recursos.

Premiar as redes que melhoram e ajudar as redes que mais precisam é um binômio cujo equilíbrio pode sempre ser ajustado. No MEC, parece haver, no momento, disposição para deixar de considerar a redução da desigualdade como uma das condicionalidades para o repasse de parte do Fundeb e mantê-la como um marco dos resultados.

Apesar da dificuldade dos municípios com desigualdades na educação é importante que sua redução seja incentivada e premiada. Tende a forçar que busquem soluções, que pressionem Estados e governo federal por mais apoio em prol dos jovens que não podem mais ser deixados para trás. Embora o prazo não seja engessado, o MEC tem até 31 de outubro para encaminhar um projeto que altere ou que deixe como estão pontos do Fundeb, inclusive este, que premia os melhores.

A fome ainda assombra o Brasil

O Globo

Para acabar com a mazela, país precisa de políticas sociais focadas e de reformas que acelerem o crescimento

Em setembro de 2021, em plena pandemia, chocou o país a cena de cidadãos disputando ossos e pelancas de carne recolhidos de supermercados e oferecidos num caminhão estacionado no Largo da Glória, Zona Sul do Rio. A imagem, revelada em reportagem do jornal Extra, era apenas uma das faces visíveis de um problema crônico, agravado pela crise econômica, pelos altos índices de desemprego e por todas as incertezas disseminadas pelo vírus que assombrou o mundo no início de 2020. A pandemia felizmente foi controlada. A fome, em maior ou menor grau, continua entre nós.

Um relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) revelou nesta semana a dimensão da catástrofe entre 2020 e 2022. Nesse período, chegou a 70,3 milhões (mais de um terço da população) a quantidade de brasileiros com algum tipo de insegurança alimentar, que em algum momento não tiveram o que comer. Um aumento de 14,6% em relação à pesquisa anterior (de 2019 a 2021), quando eram 61,3 milhões. Segundo o estudo, 21,1 milhões (10% da população) sofreram insegurança alimentar severa — passaram fome ou ficaram sem comida por um dia ou mais. O número representa um crescimento de 37% em relação ao levantamento anterior.

   Não é menos preocupante a constatação de que 10,1 milhões de brasileiros estavam subalimentados, o que, para a FAO, também é um indicador de fome. Eles não receberam as quantidades necessárias para uma dieta adequada.

A deterioração dos indicadores durante o período entre 2020 e 2022 levou o Brasil de volta ao Mapa da Fome, de onde estava ausente desde a década de 1990. Um país entra nessa condição quando mais de 2,5% de sua população enfrenta falta crônica de alimento.

Embora a pandemia tenha aumentado a fome em diferentes partes do mundo, o Brasil precisa aprender com os erros e omissões que dificultaram o ataque ao problema por aqui. Não foram poucos.Cabe lembrar que o fechamento das escolas por um tempo demasiadamente longo não afetou apenas o aprendizado das crianças, mas também a alimentação. Não se pode ignorar que muitos estudantes têm na escola a única refeição garantida. Com as crianças em casa e um cenário de crise, a situação só se agravou. É certo que o Auxílio Emergencial evitou, num primeiro momento, uma situação que poderia ter sido muito pior, mas, em seguida, o governo falhou ao desativar políticas sociais direcionadas especificamente à questão da alimentação da população mais pobre.

Desde que a nova administração assumiu, parte desses programas foi recuperada. Dados recentes mostram famílias retiradas da linha da pobreza em junho, depois da mudança no valor do Bolsa Família. Na Bahia, foram 2,26 milhões; em São Paulo, 2,25 milhões, no Rio, 1,6 milhão.Um país de renda média como o Brasil tem plenas condições de voltar a sair do vexatório Mapa da Fome. Para isso, o governo precisa tornar programas sociais mais focados, com ênfase na parcela da população mais necessitada. Ciente de que o país carece de um período prolongado de crescimento econômico acima da média dos últimos anos, o Senado deveria melhorar e aprovar a reforma tributária o mais rápido possível. A fome só pode ser vencida com políticas sociais eficientes e a criação de emprego e renda.

MEC faz bem em acabar com programa de escolas cívico-militares

O Globo

Governadores que planejam manter ou ampliar sistema insistem em erro caro

É acertada a decisão dos ministérios da Educação e da Defesa de acabar com o programa de escolas cívico-militares. O projeto iniciado no governo passado nunca foi uma solução para que o Brasil consiga acelerar as melhorias necessárias na educação. A ideia de que o desempenho de alunos em colégios militares poderia ser replicado em um modelo híbrido e em larga escala sempre foi uma ilusão. Do ponto de vista pedagógico e de custos, não fazia o menor sentido. Nenhuma democracia resolveu os desafios da educação dessa forma. 

O programa começou a ser implantado em 2020 em 51 escolas e passou da marca de 200 dois anos depois. No ápice, atendeu apenas 0,1% das unidades públicas brasileiras. De acordo com o MEC, existem hoje 216 ligadas ao projeto em 23 estados e no Distrito Federal, onde estão matriculados 192 mil alunos. Somados os estabelecimentos similares abertos por iniciativa de estados e municípios, o número total sobe, mas continua abaixo de 450.

Mesmo com poucas unidades, o custo para o governo federal era alto. O orçamento para o período de 2020 e 2022 foi de R$ 94 milhões, valor que colocou o programa entre os 15 que mais consumiram verbas discricionárias da educação básica no período. Em 2021, o gasto chegou ao absurdo de ser maior do que o investido em obras.

Embora a militarização tenha sido um equívoco, acabar com o programa de uma hora para outra prejudicaria os alunos matriculados e suas famílias. Por isso fez bem o MEC ao determinar um encerramento “progressivo”. O ofício apresentado nesta semana garante que terá início um processo “de desmobilização do pessoal das Forças Armadas envolvido em sua implementação e lotado nas unidades educacionais vinculadas ao Programa, bem como a adoção gradual de medidas que possibilitem o encerramento do ano letivo dentro da normalidade necessária aos trabalhos e atividades educativas”.

Dispostos a fazer um aceno ao eleitorado bolsonarista, alguns governadores, como o de São Paulo, prometeram, após o anúncio do MEC, não apenas manter as unidades cívico-militares, como ampliá-las. Fariam melhor se aplicassem os finitos recursos destinados à educação em programas em que o custo-benefício é razoável e existe a possibilidade de expansão para atender a maioria dos alunos.

O histórico em educação do governo federal anterior foi marcado por uma sucessão de omissões e desmontes. As poucas iniciativas foram, na maioria, ruins, entre elas a das escolas cívico-militares. Ao decidir insistir nesse erro, governadores tornarão mais difícil a meta de apresentar avanços até o final de seus mandatos. Eles precisam lembrar que serão julgados por eleitores de diferentes posições políticas a partir dos resultados de exames de todos os alunos da rede pública. O olhar e o dinheiro deveriam estar totalmente concentrados nessa missão.

Ruídos na Otan

Folha de S. Paulo

Cúpula é derrota para Putin, mas apoio à Ucrânia gera fissuras no Ocidente

A segunda reunião de cúpula da Otan desde que Vladimir Putin invadiu a Ucrânia acabou nesta quarta (12) com a celebração da unidade da aliança militar criada pelos Estados Unidos, em 1949, para conter o avanço de Moscou.

Porém o discurso amigável não disfarçou o amargor expresso pelo convidado de honra do evento em Vilnius (Lituânia), o presidente ucraniano Volodimir Zelenski.

Ele já havia dito ser "absurdo" a Otan não oferecer sequer um cronograma para adesão de seu país ao rol de 31 membros, que gozam da proteção dos pares em caso de conflito, quanto mais um convite.
Zelenski tensiona um debate já conhecido: a Otan não teria como fazê-lo sem o risco de radicalizar o cizânia entre o órgão e a Rússia.

Apesar de alguns recuos táticos, ao agradecer a novos anúncios de armas ocidentais para sua até aqui claudicante contraofensiva, o mandatário voltou à crítica.

Sobrevieram então nesgas de sinceridade dos presentes. O presidente tcheco, Petr Pavel, disse que o fastio ocidental e a campanha eleitoral americana de 2024 dão uma janela estreita para Kiev ter algum ganho militar antes de ser forçada a negociar a paz.

Mais duro, porém, foi o secretário de Defesa britânico, Ben Wallace, que criticou a falta de gratidão de Zelenski pelas armas recebidas.

"Sabe, nós não somos a Amazon", disse, comparando a Otan à gigante das encomendas online. Ele foi secundado por Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional do americano Joe Biden, que também pediu agradecimento ao ser admoestado por um ativista ucraniano.

Nada disso é bom para Zelenski, que enfrenta dificuldades para romper defesas russas. Pior, tais fissuras deixam de capitalizar o mau momento de Putin, que acaba de enfrentar um motim mercenário.

De substantivo, a cúpula trouxe renovada promessa da Turquia de aprovar a autorização para que a Suécia integre a Otan, no que será seguida pela aliada Hungria.

É uma jogada do presidente Recep Tayyip Erdogan, que se divide entre boa relação com Putin e a necessidade de ter caças americanos e, talvez, vaga na União Europeia.

Confirmada a promessa, o Kremlin verá dois países nórdicos do Mar Báltico —Finlândia entrou em abril— unindo forças contra a Rússia após 302 anos de status quo na região em favor de Moscou.

Para quem invadiu o vizinho para conter a expansão da Otan, é um desastre. Em outro revés, sua aliada China foi criticada como sempre, mas poupada de escaladas adicionais pelos parceiros europeus.

Com isso, é sugerida uma dinâmica no cenário da crise mundial para os próximos meses, ainda que a realidade recomende cautela extrema com essas projeções.

Desconforto supremo

Folha de S. Paulo

Declaração de Barroso em evento não combina com figurino de ministro do STF

Pode-se falar muita coisa a respeito do discurso de Luís Roberto Barroso na abertura do 59º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), menos que ele combina com o figurino de um ministro do Supremo Tribunal Federal.

Agindo antes como animador de auditório do que como integrante da mais alta corte, Barroso afirmou: "Nós derrotamos a censura, nós derrotamos a tortura, nós derrotamos o bolsonarismo para permitir a democracia e a manifestação livre de todas as pessoas".

Foi uma declaração tão fora de esquadro que o ministro e o próprio STF divulgaram nota para contextualizá-la. O "nós" mencionado por Barroso seria uma referência ao voto popular, não à atuação de alguma instituição específica.

O desconforto, porém, estava sedimentado. De imediato, aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) prometeram abrir processo pelo impeachment do ministro, que teria, segundo essa visão, exercido atividade político-partidária.

Não se trata, é claro, de pleito frutífero. Mas a atitude de Barroso oferece terreno fértil para o bolsonarismo plantar uma de suas sementes favoritas: o descrédito do Judiciário. E isso vindo de um ministro que conhece tal seara. No ano passado, ao ser hostilizado por apoiadores de Bolsonaro, ele respondeu: "Perdeu, mané. Não amola".

Ainda que não configurem crime de responsabilidade, as condutas se chocam com os deveres éticos do magistrado, de quem não se esperam comportamentos capazes de refletir favoritismo, predisposição ou preconceito.

Alguns ministros do STF, contudo, são pródigos nesse mister. O caso de Gilmar Mendes é o que mais chama a atenção. No fim de junho, o instituto do ministro, em parceria com a FGV Conhecimento, realizou mais um evento acadêmico em Lisboa, do qual participou, entre outros, Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados.

Poucos dias depois, Gilmar suspendeu apuração sobre contratos de kit de robótica que envolve aliados de Lira. A isso se soma decisão de novembro, tomada pelo mesmo ministro, em favor da FGV, investigada pela Polícia Federal.

Pouco importa o mérito desses processos ou as intenções de uma declaração; quando um magistrado dá azo a suspeitas, nenhuma explicação pode ser suficiente para acalmar espíritos mais desconfiados —e o desconforto de um ministro com as reações nem se compara com o que sente o próprio STF.

O incômodo lembrete do Tesouro

O Estado de S. Paulo

Relatório mostra que ainda há muito a ser feito na área fiscal, desde já.

O governo terá de arrecadar R$ 162,4 bilhões a mais para cumprir a ambiciosa meta de zerar o déficit primário no ano que vem. A projeção não é de especialistas, mas da própria Secretaria do Tesouro Nacional, que divulgou a versão mais recente do Relatório de Projeções Fiscais. O cenário apresentado pelos técnicos resume o tamanho do desafio que o governo Lula da Silva terá se quiser realmente cumprir os objetivos definidos por seu próprio arcabouço fiscal, o que requer rever gastos e não contar com receitas que caiam do céu.

Os indicadores da última década confirmam a existência de um déficit consistente nas contas públicas desde 2014, interrompido apenas pelo efêmero superávit do ano passado. Entre 2013 e 2022, a receita corrente líquida, influenciada pelo desempenho da economia, teve um comportamento errático, enquanto as despesas tiveram não apenas um crescimento real, mas um avanço contínuo.

A divulgação do relatório traz um pouco de realidade para o cenário macroeconômico, marcado por boas notícias nas últimas semanas. Depois de meses de inflação elevada, o País finalmente registrou uma deflação de 0,08% no mês de junho. Ainda que pontual, o resultado animou economistas e já há quem preveja o IPCA bem mais próximo do teto da meta no fim deste ano. Puxado, sobretudo, pelo agronegócio, o Produto Interno Bruto cresceu 1,9% no primeiro trimestre, elevando as estimativas de crescimento da economia do mercado para 2,19%, segundo o mais recente Boletim Focus, e 2%, segundo o Banco Central.

A aprovação da reforma tributária pela Câmara, por sua vez, trouxe otimismo em relação ao futuro. Embora não tenha efeitos diretos ou imediatos e ainda precise passar pelo crivo do Senado, a perspectiva de simplificação do sistema tributário delineou um cenário de otimismo, em que se antevê um ambiente mais favorável aos negócios, à produção e aos investimentos. O amplo apoio dos deputados à proposta animou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a cogitar a antecipação do envio da segunda etapa da reforma, sobre renda, ao Congresso.

Nesse sentido, o relatório do Tesouro Nacional traz um importante lembrete ao governo: ainda há muito a ser feito na área fiscal, e desde já. O arcabouço já havia sido criticado por uma certa frouxidão e por depender majoritariamente da recuperação de receitas. Mas, ainda que todas as medidas anunciadas pelo Ministério da Fazenda alcancem os resultados almejados, será necessário um esforço ainda maior – e permanente – por parte do governo para atingir as metas fiscais nos próximos anos.

Não há escolha fácil. O contingenciamento de despesas discricionárias foi limitado pelo Congresso, e há muitos gastos já contratados para os próximos anos, como o passivo de precatórios, o avanço das emendas parlamentares, a política de valorização do salário mínimo e a retomada dos mínimos constitucionais para as áreas de saúde e educação, de 15% da receita corrente líquida e de 18% da receita líquida de impostos, respectivamente.

Saúde e educação, em especial, são áreas sensíveis para o governo e para o presidente Lula da Silva, mas a equipe econômica terá de enfrentar o problema da vinculação desses gastos em algum momento. O ideal seria que fosse o quanto antes – se não pelo imperativo da responsabilidade fiscal, para impedir que o espaço decisório do governo na alocação de recursos seja completamente eliminado e que o arcabouço seja deturpado.

“O elevado nível de vinculações tende a extinguir a discricionariedade alocativa, pois reduz o volume de recursos orçamentários livres que seriam essenciais para implementar projetos governamentais prioritários, que atendam às necessidades da população em cada momento do tempo. Assim, em regra, não se recomenda a vinculação de recursos. No entanto, para o caso das vinculações existentes, caso decida-se por revisitá-las, é importante que a vinculação favoreça a previsibilidade e a execução das políticas que se pretende priorizar”, diz o relatório. A recomendação do Tesouro, clara como o dia, tem o apoio deste jornal.

O erro das escolas cívico-militares

O Estado de S. Paulo

Governo fez bem em encerrar o programa, que, saudosista do regime militar, não atendia à necessidade de prover educação de qualidade para todos, meta de qualquer política pública

O governo federal comunicou aos secretários estaduais de Educação, no dia 10 passado, o encerramento do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (Pecim). Criado em 2019 por um decreto do presidente Jair Bolsonaro, o programa encaixava-se com perfeição no ideário bolsonarista. Tratadas como sinônimo de balbúrdia e antro de “esquerdistas”, as escolas públicas precisariam de ordem e de disciplina e, sob a ótica do saudosismo da ditadura, ninguém melhor do que os militares para levar a cabo essa missão. O programa fomentava a implantação de um modelo cívico-militar, no qual a gestão das escolas públicas ficaria a cargo de militares.

São muitos os erros contidos na proposta de militarização do ensino, a começar pela ideia de que o problema das escolas públicas seria político-ideológico. Na verdade, mais do que um diagnóstico sério sobre a educação brasileira, isso é parte do discurso eleitoral de Jair Bolsonaro. Nesse sentido, o Pecim tem uma deficiência estrutural em seu objetivo. Em vez de atender a razões pedagógicas, ele busca instrumentalizar as escolas para fins eleitorais.

A segunda grande deficiência do Pecim era a notória incompatibilidade entre os meios e os fins propostos. O programa vinha implantar, até o fim de 2022, 216 escolas administradas por militares – um número ínfimo em relação ao universo de mais de 178 mil escolas públicas no Brasil. Ou seja, o programa, por seu próprio desenho, era incapaz de promover, como oficialmente proposto, “a educação básica de qualidade aos alunos das escolas públicas regulares”. Seu pequeno alcance permitia apenas, eis a dura realidade, criar alguns nichos dentro do sistema.

Constata-se aqui mais do que simples problema de proporção entre meios e fins, o que já seria grave. Havia uma compreensão equivocada de política pública, na qual o foco não são todos os cidadãos ou os mais necessitados, mas apenas os mais alinhados ideologicamente ao governo.

O grande problema do Pecim está, no entanto, na própria ideia de que a militarização das escolas seria um caminho de aperfeiçoamento do ensino público. A missão institucional das Forças Armadas não é prover educação aos jovens, e sim defender a Pátria. O mesmo se aplica às Polícias Militares: não é seu papel cuidar de escola.

Existem colégios militares, alguns de reconhecida excelência acadêmica, criados fundamentalmente para atender as famílias dos membros das Forças Armadas. Mas a educação pública deve ser civil, sob administração civil e orientação pedagógica também civil. É equivocado achar que os problemas da sociedade e do Estado devem ser resolvidos pelos militares. É responsabilidade do poder civil – e, portanto, da própria sociedade civil, que elege seus representantes políticos – assegurar educação de qualidade a todas as crianças e jovens.

Por todos esses motivos, fez bem o governo federal em extinguir o Pecim, dando início a um processo de transição, que inclui, além da desmobilização de pessoal das Forças Armadas dedicado aos colégios, medidas para permitir o normal encerramento do ano letivo nessas escolas, sem que os alunos sejam prejudicados.

Tão logo houve o anúncio do fim do Pecim, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, prometeu editar um decreto para “regular o seu próprio programa de escolas cívico-militares e ampliar unidades de ensino com este formato”. É compreensível que, valendo-se do princípio federativo, Tarcísio de Freitas queira aproveitar a ocasião para agradar à parte de sua base eleitoral. Cada Estado tem autonomia para desenvolver suas próprias políticas educacionais.

No entanto, as ressalvas do Pecim valem também para os programas estaduais. A militarização de escolas não é resposta suficiente nem adequada para a melhoria da educação. Educar bem não é criar nichos de segurança à base de disciplina militar. O caminho da excelência educativa é outro, já que a meta não é formar soldados, e sim cidadãos autônomos e responsáveis. A educação na liberdade não é uma opção, mas condição de toda verdadeira educação.

Resolução e cautela na Otan

O Estado de S. Paulo

A aliança militar deu provas de união e, a despeito dos ruídos, fortaleceu a Ucrânia

A cúpula da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foi o mais importante teste para a aliança desde o começo da guerra da Ucrânia. Esperava-se que ela mostrasse unidade, e mostrou. Não que não tenha havido divergências. Mas divergência não é sinônimo de desunião. As discussões sobre quando e como a Ucrânia deve integrar a Otan foram intensas e emocionais, mas há um consenso de que a aliança precisa se fortalecer e construir pontes para aproximar Kiev do Ocidente. “O futuro da Ucrânia está na Otan”, disse o comunicado final. As diferenças em relação aos meios não excluem a convergência em relação ao fim.

A Otan começou a cúpula com 31 membros e terminou – se não formalmente, na prática – com 32. A queda do veto turco ao ingresso da Suécia foi um duplo revés para o Kremlin. Primeiro, porque ela fortalecerá as defesas dos Estados Bálticos e do Norte. Depois, por sinalizar a aproximação diplomática com a Turquia, que vem se mantendo equidistante entre a Rússia e o Ocidente. Os aliados ainda aprovaram seu primeiro plano abrangente de defesa desde a guerra fria, com diretrizes para as fronteiras ao norte, centro e sul.

Quanto à Ucrânia, o próprio presidente Volodmir Zelenski admite que “não podemos ser um membro da Otan durante a guerra”, o que significaria envolver a Otan em um confronto direto com a Rússia. Mas – apoiado pela Polônia e os Estados Bálticos, que veem nas ambiguidades zonas cinzentas a serem exploradas por Vladimir Putin – esperava ao menos a formalização da palavra “convite”, acompanhada de um “plano de integração”. Não recebeu nenhum. Mas não saiu de mãos vazias.

“Estaremos em posição de estender um convite”, disse o comunicado, “quando os aliados concordarem e as condições forem atingidas.” Essa é uma expressão da relutância dos EUA. Com boas razões. É legítimo enquadrar a guerra, em termos gerais, como uma batalha da “democracia contra a autocracia”. Comparativamente, contudo, a democracia ucraniana é, para dizer o mínimo, precária. A corrupção é endêmica. Ao tocarem o freio do ingresso, os aliados o estão usando como uma alavanca para pressionar Kiev por reformas. Para os EUA é também uma alavanca para pressionar a Europa a fortalecer suas defesas. De todo modo, os aliados ofereceram um processo acelerado de ingresso uma vez que a guerra termine.

Para terminá-la, o hipotético ingresso da Ucrânia no futuro é menos relevante que sua defesa no presente. Os países do G-7 se comprometeram a fornecer mais arsenais, inteligência e treinamento a Kiev. Outros países podem vir a assinar esse compromisso. Assim, se, no meio da cúpula, Zelenski estrilou contra as relutâncias ao ingresso como “absurdas”, ao fim, admitiu que “os resultados foram bons”.

A Otan, tantas vezes acusada, por dentro, de ser muito leniente e, por fora, de ser muito agressiva, deu passos rumo a um mundo menos hostil às democracias e ao fortalecimento da Ucrânia na batalha, mas com a prudência necessária para evitar que a violência desencadeada pelo desvario de Putin escale ainda mais.

 

 

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