terça-feira, 11 de julho de 2023

Paulo Fábio Dantas Neto* - O jogo político e a institucionalidade dos poderes de governo

A amplíssima maioria dos agentes do sistema político, nos três níveis da federação, da imprensa e de importantes setores da sociedade civil comemoram o desfecho da votação da reforma tributária na Câmara dos Deputados e passam a encarar com muito mais otimismo a etapa de tramitação que se iniciará a partir de agora no Senado Federal. A hipótese provável de alterações no texto está sendo recebida na chave positiva de um até desejável aperfeiçoamento e não como risco de bloqueio de um processo que assumiu uma dinâmica política virtuosa. A percepção favorável é tão nítida e o consenso político tão significativo que é razoável supor que contamine positivamente a percepção e as expectativas do eleitorado em relação à economia.

A aprovação por expressiva margem de votos parlamentares justifica plenamente esse sentimento público de regozijo e mesmo de confiança na capacidade do sistema democrático processar uma demanda cuja relevância e urgência como pauta ninguém discute, nem mesmo a minoria que se opôs ao texto aprovado. Afinal, não é todo dia que a política resolve, como começou a resolver agora, uma questão de tal complexidade e potencial de dissenso, que se manteve como tabu por décadas, desde praticamente a fundação da república da Carta de 88. O processo sinaliza, para além de um novo cenário tributário com implicações supostamente virtuosas sobre economia e sociedade, também um tento alentador para a democracia política.

A construção de consensos políticos majoritários, em lugar de soluções violentas dos dissídios sociais é uma marca distintiva da democracia, persuasiva da sua superioridade enquanto sistema representativo e pluralista de valores e procedimentos políticos. Por outro lado, também a distingue a dinâmica salutar da competição política, imperativo esse nem sempre bem compreendido (especialmente em sua inescapável dimensão eleitoral) por uma “cultura política” engendrada pela nossa experiência histórica com a forma política da República. Essa tradição republicana impregnada de compromissos com motivações sociais, mas também de autoritarismos de diversos calibres, por vezes combina-se e por outras entra em relação tensa com a marca liberal de origem do Estado Nacional. Daí o desconforto que frequentemente se sente quando um processo até aqui auspicioso como o da aprovação de uma reforma tributária é motivo de disputa política pelo papel de protagonista. Por mais que estetas de uma política “ideal” torçam o nariz para essa disputa e que seus próprios atores a dissimulem, ela é intrínseca à política democrática. Deve ser encarada com a curiosidade que as coisas relevantes merecem. Por isso não é questão menor entender como se obtém resultados num dado sistema político e como diversos atores e fatores os tornam possíveis. No centro dessa busca de compreensão está a relação institucional entre o Legislativo e o Executivo e o poder que cada um deles detém, na prática, de decidir a agenda política com a qual se governa um país.

Em geral, nas linhas do vitorioso discurso do Presidente da Câmara no dia da votação e da entrevista do Ministro da Fazenda à jornalista Natuza Nery, dias depois, há forte sintonia e estreita convergência na avaliação positiva dos resultados, no reconhecimento idem do papel de todos os interlocutores e no regozijo pela afirmação da democracia e da política. Mas uma dessas linhas, em particular, mostra uma diferença de ênfase, ou de perspectiva. Haddad, salientando o sucesso de um método virtuoso, celebra o que seria a “volta” da política com “P maiúsculo”. Lira salienta o papel contínuo da política em sua capacidade de, com todos os “pês” do possível, representar hoje, como sempre, a sociedade. Maiúscula, para ele, foi a vitória. Aliás, vitória mais sua, mesmo, por se tratar de matéria da agenda do Congresso, que o governo assimilou. Assim como na vitória seguinte, na mudança em regras do CAF, o Congresso assimilou, como o Congresso antecessor fizera no caso da PEC da transição, uma matéria da agenda do governo. Numa palavra, houve negociação, o que não encerra a competição.

Da suave distinção entre as falas do deputado e do ministro derivam entrelinhas em que se esconde a disputa de autoria da tessitura da obra. Se o tabu da reforma tributária foi quebrado porque há novo governo no país ou porque o Congresso consolidou sua atividade governativa é questão em aberto que, a rigor, não precisa ser fechada, a não ser para fins eleitorais, para os quais será resolvida no campo da comunicação política. Mas no campo das alianças, a indefinição sobre os louros não nos dispensa de analisar as alternativas de movimentos que se oferecem a ambos os polos, após a vitória comum.

O presidente da Câmara – e, provavelmente, seu sucessor – seguirá com o mesmo leque de opções. Prosseguir na atitude cooperativa com a base do governo; enfrentá-lo, no âmbito do Legislativo, caso outro bloco de forças (novo centro diverso do centrão) assuma ali a face do governo; ou na arena aberta da disputa eleitoral, operando com a oposição, a depender do porte que ela vier a assumir. Já o presidente da República parece ter entrado num caminho sem volta. Assimilando a liderança de Lira e parâmetros de agenda que essa liderança exprime, descarta caminho ao centro que não a aliança preferencial com o centrão-raiz. Trata-se, neste artigo, de mera constatação, sem juízo de valor sobre a coerência da escolha ou juízo analítico sobre se haveria outra. É situação que pede reflexão específica.

Novo script

É da memória política e institucional mais ou menos recente considerar que a equação demonstrativa dos resultados da relação entre Executivo e Legislativo no Brasil era a seguinte: agenda do governo + poderes legislativos do Presidente + negociação política com partidos, bancadas e parlamentares, individualmente = governabilidade ou ingovernabilidade. O resultado positivo ou negativo variava, principalmente, conforme uma maior ou menor disponibilidade de recursos governamentais e mais ou menos disposição e habilidade políticas do Chefe do Executivo para exercer seus poderes de coordenação e fazer concessões para que o poder coadjuvante cooperasse.

Como se tem comentado amiúde, essa fórmula já não é capaz de demonstrar o que de fato ocorre. Pratica-se, desde 2019, outra fórmula, que ainda se tem escrúpulos de enunciar: agenda do Legislativo + poderes governamentais do Congresso + atitude da liderança do Congresso perante o Presidente e seu governo = estabilidade ou instabilidade políticas. O resultado positivo ou negativo depende principalmente da capacidade do Legislativo de se coordenar internamente para fixar diretrizes políticas e governamentais suas, cotejá-las com as diretrizes do Executivo para negociar acordos ou, em caso de desacordo, convertê-las em balizas imperativas da maioria parlamentar. A nova configuração política do Executivo e o perfil do atual presidente possibilitam variantes, mas o processo não é mais o que vigorava antes e não se delineia uma terceira fórmula, inclusive porque a outra parte - o Legislativo – tem força institucional e coesão política suficientes para conservar, no essencial, a segunda.

Além da óbvia revogação da tradicional coadjuvância do Congresso, a nova situação afasta, ou pelo menos minimiza, consideravelmente, as chances de que uma instabilidade política na relação entre os dois poderes resulte em crise de governabilidade, do ponto de vista institucional. Durante 2019 e 2020, o país foi governado, em boa medida, pelo Congresso, respondendo positivamente a demandas cruciais da sociedade sob condições de alta tensão política nas relações entre as cúpulas dos poderes. De sã consciência não duvidaremos de que o acontecido poderia se repetir caso o novo governo se recusasse a fazer um ajuste fiscal e colocasse na cadeira de ministro da Fazenda um petista sem as convicções e métodos políticos de Fernando Haddad. O Congresso tem hoje meios e expertise para tocar, por algum tempo, uma agenda positiva de governo sem a anuência do Poder Executivo. Eduardo Cunha, hoje, não precisaria usar tanto pautas-bomba porque teria como fazer bondades enquanto o governo sangrasse.

Por outro lado, na vigência da fórmula atual, também é possível – como ficou patente nos dois últimos anos de Bolsonaro em palácio - haver simultaneamente paz política entre os dois poderes combinada com graves distorções na governança institucional, das quais o problema fiscal e orçamentário não foram os únicos exemplos. Esse tipo de crise de governabilidade contínua, de infiltração da pequena política em áreas administrativamente estratégicas do governo, pode produzir resultados funestos sem a chance de correção de rota que surgem em crises institucionais explícitas. Ainda que nem o otimismo da vontade nem o pessimismo da razão autorize vislumbrar esse risco no contexto imediato da paz política que arautos de várias colorações anunciam como fruto previsto de uma reforma ministerial, convém anotar que, no script pós 2018 das relações entre governo e congresso, governabilidade e estabilidade política são processos que ganharam mais autonomia recíproca. O congresso dá mostras de que poderia repetir 2019 e impedir o desgoverno se o presidente quisesse chutar o pau da barraca. Também não são poucos os riscos de que acordos políticos entre chefes dos dois poderes possam trazer avarias importantes à qualidade da governança democrática, vindo a comprometer, a longo prazo, a própria governabilidade em caso de acordos em descompasso com o aceito pela opinião pública.

Aritmética e política

Cálculos aritméticos banais são de alto risco nessa hora. Eles subestimam a inflexão do eleitorado brasileiro à direita, num momento em que, para o bem e para o mal, crenças e valores assumem papel de importância crescente, ao menos nas arenas plebiscitárias das democracias, caso da arena das nossas eleições presidenciais. Eles reproduzem um tipo de pragmatismo saturado, que supõe ser o eleitorado um reflexo passivo da lógica profissional da política. As eleições de 2018 - e mais ainda as de 2022 - deixaram claro que instrumentalização do orçamento, por exemplo, vale para eleger Congresso, não Presidente da República. Bolsonaro e Lula venceram eleições presidenciais contra essa lógica.

O isolamento político da extrema-direita e a provável inelegibilidade de Bolsonaro retroalimentam-se para fazer do otimismo razoável uma festividade afoita da parte de quem opera o governo. Para a liderança do Congresso e a centro-direita ali hegemônica aqueles dois processos são uma nítida baliza que as fortalece. É visível a inversão de sentido dos vetores de força entre centro-direita e extrema-direita, em favor da primeira, uma vez que enquanto a outra perdeu acesso a processos decisórios, lideranças moderadas assenhoram-se de postos-chave do Congresso e garantem a continuidade do fluxo de recursos governamentais que as aduba. E a julgar pelo cenário desenhado após a votação da reforma tributária na Câmara, esse fortalecimento não parece caminhar para um quadro de competição interna, uma vez que, paradoxalmente ou não, combina-se que Artur Lira agora é, para todos os efeitos, moderado. O poder imperial que ostenta exerce efeito dissuasivo sobre eventuais resistências ao comando que ele deve exercer sobre sua própria sucessão. A desativação de um possível foco relevante a partir da virtual candidatura do deputado Marcus Pereira, presidente do Republicanos, parece iminente, por duas vias: a aproximação entre Lira e o governador de São Paulo e, apesar dela, o uso do governo federal para acomodar o partido à estratégia sucessória do presidente da Câmara. O núcleo de poder da Casa mantém, como já dito, a sua autonomia face à disputa política da presidência da República. Veremos, no segundo semestre deste ano, se algo assim ocorrerá no Senado.

Já as implicações desse duplo fato (isolamento da extrema-direita e provável inelegibilidade de Bolsonaro) sobre o governo Lula são incertas, sendo ambíguas as que se projetam sobre o longínquo cenário da sucessão presidencial. O isolamento da extrema-direita pode ajudar o governo se ele inflexionar de fato ao centro, movimento hoje ainda restrito à política fiscal e tributária, o que é muito, mas efeitos políticos dependem da coerência com a orientação de outras áreas sistêmicas do governo e do êxito prático da agenda social. Por outro lado, a conversão do isolamento político em desidratação eleitoral será possibilidade real caso hipóteses de candidaturas como a do governador Tarcísio de Freitas encontrem eco mais ao centro. Se não houver eco, a tendência é da direita como um todo seguir a partitura de 2022, com discurso e uma estratégia polarizadores, seja através de Tarcísio ou de algum bolsonarista mais raiz. O eleitorado de centro-direita tende a não acompanhar a lógica de uma aliança do centrão até a esquerda e a recorrer à direita mais dura, como fez em 2018 e, parcialmente, em 2022.

A virada do eleitorado à direita não é um fenômeno sazonal que possa ser revertido por movimentos da epiderme da política. Terá resiliência se a alternativa eleitoral à direita radical for só a esquerda. Por outro lado, a reversão dessa tendência do eleitorado requer um giro político com dimensão também societal, que o presidente Lula se mostra incapaz de fazer. Primeiro porque não quer fazer, em razão da sua guinada populista, verificada nos anos mais recentes, após sua prisão; segundo porque não sabe fazer esse giro, em razão da relativa anacronia de sua visão de mundo; terceiro porque o PT tem força bastante para impedir. A hipótese, que vai ficando inscrita no horizonte, de uma candidatura à reeleição, tende a aumentar a resiliência do antipetismo e a revalidar, para eleitores mais ao centro, a querela entre inseto e inseticida que guiou sua opção majoritária contra a reeleição de Bolsonaro.

O horizonte da reeleição é o da continuidade de uma transição, promissora para metade do país, penosa para a outra metade. É um horizonte com boa chance de se impor. Mas a reflexão que não pode descansar na resignação é a que mostra o outro lado da lua no poder nacional. Foi-se – e é provável que não volte – o tempo em que ele poderia se resolver na eleição presidencial. O Poder Legislativo, o outro lado do balcão institucional dos negócios políticos, é o que detém hoje - um hoje que não tem nenhum jeito de que tão cedo poderá ser ontem - o maior poder de agenda e deputados e senadores estão cada vez mais capacitados a uma ação coletiva. Essa primeira realidade pode agradar alguns (incluo-me entre esses, ao menos quanto ao poder de agenda) e desagradar outros, mas não guarda, em si mesma, um risco de escolha fatal. Mas devemos acrescentar que esse poder de agenda, no caso da Câmara, está se concentrando como poder pessoal com uma intensidade que poucas vezes se alcançou no âmbito do Executivo. Essa realidade pode até agradar a alguns poucos, mas deve preocupar os democratas. O poder pessoal de Lira no âmbito da Câmara vem de antes, mas não tem nada de natural. Há sinais de que cresceu nos últimos meses, quando se esperava que diminuísse, seja pela mudança política no Executivo, seja pelo limite datado do seu mandato. Como jabuti não sobe em árvore, é um bom ponto saber onde está o elevador.

*Cientista político e professor da UFBa.

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