Folha de S. Paulo
Agressores de Moraes tentaram impedir o
livre exercício de um Poder
Ainda não vencemos o
"bolsonarismo", entendida a palavra como ataque às instituições e a
padrões mínimos de tolerância e vida civilizada. Por que isso? A imprensa está
coalhada de um falso garantismo que foi sendo gestado nos quatro anos de
mandato do "não-estupraria-porque-não-merece". Para alguns sábios,
pelo visto, o mandado de
busca e apreensão na residência de Andreia Munarão e Roberto
Mantovani, o casal que investiu contra Alexandre de
Moraes e sua família em Roma, ameaça o Estado de Direito mais
do que as invectivas contra o ministro e a agressão a seu filho. É uma
aberração.
Há ainda quem sustente que estão em curso desmandos similares aos da Lava Jato. É uma tolice que vem em curiosa embalagem: os que apontam a suposta semelhança em tom crítico atuaram, não raro, como esbirros da força-tarefa, inclusive no jornalismo. Volto ao ponto mais tarde.
Certamente não foram os Moraes a se
incomodar com a presença dos Mantovanis. Se
um juiz do Supremo é chamado, aos berros, em ambiente público, de
"bandido, comunista e comprado" —tais palavras, note-se, são um selo
de "Denominação de Origem Controlada"; é a "DOC"
bolsonariana —, tem-se um agravo bem mais sério do que "injúria, ameaça e
desacato", artigos 140, 147 e 331 do Código Penal.
Fosse só isso, as penas, somadas pelo topo,
renderiam três anos de reclusão. Com atenuantes, dá para tomar uma champanhota
com amigos e comemorar o feito. A impunidade sairia no xixi. Numa próxima, quem
sabe um outro valentão aprimorasse a intervenção e, com furor patriótico,
quebrasse a cara de um magistrado. Senti vergonha alheia ao ler as opiniões.
Que não a tenham experimentado ao emiti-las, fazer o quê? Essa tal vergonha
pode ser solipsista; o direito não.
O também presidente do TSE não
virou alvo dos ataques —sendo expostos, ele e os seus, a riscos— porque os
agressores sejam entusiastas de suas decisões ou apreciem a sua notável
dedicação à defesa da legalidade. Ao contrário. Demonstraram que o livre
exercício do Poder Judiciário não lhes serve. Incidiram no artigo 359-L do CP:
"Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado
democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes
constitucionais". A pena também escala: de 4 a 8 anos.
"Oh, mas quiseram mesmo algo tão
grave?" Convém, adicionalmente, reler o texto à luz da gramática. Em
primeiro lugar, ele pune a "tentativa", não o fato consumado
—hipótese em que seria o golpista a impor a sua vontade aos golpeados. Em
segundo lugar, mas não menos relevante, atentem para os gerúndios
"impedindo" e "restringindo". A Nomenclatura Gramatical
Brasileira (NGB) não reconhece, e estou entre os que consideram isso um erro, a
existência da "oração subordinada adverbial modal". Obviamente, a
forma nominal dos verbos "impedir e restringir" expressa o modo como
se busca a abolição do regime. O erro da NGB perturba alguns gramáticos; já a
leniência com o golpismo esgarça a gramática institucional.
Se o sistema judicial passar a considerar
crime de menor potencial ofensivo o constrangimento, com motivação
escancaradamente política, de integrante de uma corte superior, então a
democracia já estará no abomaso, o quarto cômodo do estômago dos ruminantes.
Afirmar que a simples injúria não enseja um
mandado de busca e apreensão não traduz uma opinião sobre a razoabilidade ou
não de tal instrumento, mas emite um juízo —errado!— sobre o que se deu no
aeroporto. Ignorar que a intimidação de um membro do STF pertence a uma
cadeia de eventos em que se inscreve a vandalização da sede do próprio tribunal
corresponde a exercitar o direito com as viseiras da ideologia, do interesse ou
da alienação. Irresponsável teria sido não tomar a decisão, valendo por um
pré-julgamento pela via da omissão. O bem que se quer proteger, com a medida,
não se limita à honra do ministro. Conhecemos o custo de subestimar riscos.
Quanto a estarmos vivendo um novo
lava-jatismo, observo: a falsa simetria é uma das formas mais preguiçosas de
pensamento. Ignorado o que os distingue, Schopenhauer é igual a um
dragão-de-komodo. As diferenças determinam a razão de ser de cada coisa.
Azevedo e seu rigor com os malfeitos.
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