quarta-feira, 5 de julho de 2023

Roberto DaMatta - Mãe Terra ou desigualdade?

O Globo

Enxergar o planeta como sujeito, e não como um objeto passivo e passível de implacável exploração, é o primeiro passo

Um bolsonarizado Lula defende ditadores na Venezuela e uma absurda relativização da democracia, mas bota o dedo na ferida quando relaciona a “questão climática” à desigualdade.

A incompatibilidade entre um sistema motivado por um incremento ilimitado de produção e consumo e a destruição do planeta é certamente o maior conflito que devemos enfrentar. Enxergar o planeta como sujeito, e não como um objeto passivo e passível de implacável exploração, é o primeiro passo para equacionar esse conflito. O globo azul é a Mãe Terra que partejou todos os sistemas humanos e não humanos de vida conhecidos. Vale lembrar, ensina Thomas Mann, que não por acaso o homem se chama Homo humanus, como sinal de que vem do torrão materno, o húmus.

Não é possível discutir o clima, que não tem intencionalidade nem fronteira, num planeta criteriosamente dividido por povos territorializados em Estados nacionais soberanos e invioláveis, todos impulsionados pelo modelo bíblico, em que o planeta que estava obviamente fora do Jardim do Éden era um presente do Criador.

Um mundo aberto a todos os seus filhos, mas que pode ser caracterizado por dois momentos. O primeiro, quando a Terra como planeta englobava suas diversas humanidades; o segundo, quando uma variante de suas humanidades — o Ocidente capitalista — começa a alienar o planeta de seus direitos mais legítimos, pondo em risco sua sobrevivência com arsenais nucleares e guerras.

“O direito do meio ambiente, de que tanto se fala — adverte Lévi-Strauss — é um direito do meio ambiente sobre o homem, não um direito do homem sobre o meio ambiente.” Fundado nessa visão, em que o todo tem exigências que os sistemas de produção suprimiram e tornaram universais, não é fácil harmonizar o projeto de “explorar as riquezas naturais” sem afetar mortalmente o “meio ambiente”. Sem comprometer a totalidade planetária onde todos (ricos e pobres, ateus ou crentes, democratas ou autocratas) somos (como tribos, reinos, impérios, repúblicas, ditaduras, potências mundiais nucleares) hóspedes temporários. Será preciso ouvir a “natureza”, que não é concebida do mesmo modo em todas as culturas, para dotá-la de condições que compensem a violência a ela aplicada pela racionalidade utilitária e pelo consequente desencanto capitalista.

A questão da preservação da Amazônia, de forma a conciliá-la com a fúria imposta pelo estilo de vida dominante, é certamente o caso mais agudo — ao lado da desertificação, da poluição do ar e dos oceanos e de outras formas de transformação da natureza — de uma convivência com o meio ambiente por meio de um “utilitarismo autorregulado”, que não contempla limites e somente agora toma consciência do elo contraditório entre a Terra como planeta e como uma mera reserva destinada à desenfreada exploração capitalista.

Foi com essa fúria que o West — o Ocidente — fatiou partes do planeta em quintal colonial; e, depois, no “resto”. Mas e quando esse “resto” ganha voz e, visto de fora para dentro, se conscientiza das anormalidades reveladoras, em todo lugar, de uma ausência de limites e aponta para uma eventual exaustão?

O que fazer senão discutir o tenebroso abismo das desigualdades? Seja como um hóspede não desejado, seja como uma dimensão ontológica da condição humana? Seria possível reunir toda a boa vontade e boa-fé de nossas mil e uma humanidades e concepções de vida para, se não liquidá-las como sempre quiseram os messiânicos, ao menos promover uma benfeitoria universal? Uma dilatação de fronteiras ou desterritorialização. Um desbastar de soberanias de modo a deixar de ter como foco nós — do país A, B ou C — não em oposição e competição, mas com e ao lado dos outros?

Será que esses retornos reacionários ao autoritarismo não estariam anunciando ou intuindo, a seu modo, essas mudanças de patriotismo exclusivista para um nacionalismo mais inclusivo? Ou seriam eles sinal de que estamos todos prisioneiros da famosa jaula de ferro weberiana?

 

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