O Globo
O Supremo finalmente votou sobre a
constitucionalidade do juiz de garantias. Lei aprovada pelo Congresso em 2019,
cuja aplicação estava suspensa — desde 2020 — em decorrência do já histórico (e
desde já as minhas escusas ao ministro) monocratismo corporativista de Luiz
Fux.
Um juiz segurando, por anos, o exame de
ação acerca da validade de desígnio do legislador. Um juiz, sozinho, impedindo
que a Corte constitucional cuidasse de informar se lei votada pelo Parlamento
estava de acordo com a Constituição.
Interditava não apenas o trânsito pleno da atividade do Legislativo. Também boicotada — interrompida mais uma vez — a expressão colegiada-impessoal do tribunal, a que dá força à Corte que compõe, cujo plenário esvaziado contrasta com a forma desinibida como os togados progressivamente usam suas musculaturas individuais.
Fux foi voto vencido (vencido igualmente o
abuso de poder), ainda que tenha reformado a própria derrota — a óbvia
constitucionalidade da lei obviamente posta — para que não o expusesse tão isolado.
Terminou o julgamento modulando para propor-defender que a implementação do
juiz de garantias fosse facultativa, a depender de cada tribunal.
Perdeu também. O STF analisava a
constitucionalidade da matéria. Sua função. Sendo constitucional, e sendo lei
votada pelo Congresso como de estabelecimento obrigatório, obrigatória
ser-lhe-á a aplicação. Ponto final. Ainda que seja — a ideia de limite — de
difícil compreensão para mentalidades autoritárias empoderadas.
Ministros do Supremo (perdão) não podem tudo.
Sempre poderão, largando a caneta que assina liminares, concorrer, via voto
popular, a uma cadeira no Parlamento — o espaço deliberativo essencial, na
República, para a reforma das leis.
O que é, em resumo, o juiz de garantias?
Figura que cuidará do período de instrução do processo, da supervisão da coleta
de provas e da autorização de medidas cautelares — etapa em que o magistrado
tem contato quase exclusivo com elementos levantados pela acusação, o que
poderia gerar algum grau de contaminação. A partir da denúncia oferecida,
entrará em campo um juiz para tratar de sua eventual recepção e, em caso
positivo, do julgamento em si.
Não existe legislação capaz de encarnar a
panaceia de um sistema puro, imaculado, livre de distorções. A
constitucionalidade do juiz de garantias deriva, sem maiores fantasias, do
objetivo de seu advento: por meio da redução do risco de parcialidade nos
julgamentos, assegurar — o próprio espírito da Constituição — o respeito aos
direitos fundamentais dos investigados. Um ideal a perseguir. Uma meta, pois,
constitucional.
Destaco trecho do voto de Luís Roberto
Barroso:
— Bom ou ruim, gostando ou não gostando,
acho que foi uma decisão legítima tomada pelo Poder Legislativo. De modo que,
não havendo incompatibilidade com a Constituição Federal, nosso papel é acatar
a vontade manifestada pelo legislador.
A passagem define a atribuição da Corte
constitucional — faz lembrar o valor do comedimento, esse saudoso — e tem
especial peso por ser Barroso, com todas as vênias, um habitual senador togado.
Passagem não desprovida de algum humor por
haver o Supremo, mesmo numa rara votação em que — ao menos em discurso —
colocou-se no lugar, modificado o texto aprovado pelo Congresso. Ou não terá o
Legislativo determinado que o juiz de garantias sairia de cena somente após o
recebimento da denúncia? Ah, os vícios...
Esse julgamento, a propósito de ampliar o
alcance do debate, suscita reflexões de fundo, para além das pautas do dia.
Porque já existe, no Brasil, desde há muito, literalmente em última instância,
um juiz natural de garantias: o Supremo. O Supremo em sua natureza plenária: o
juiz de garantias.
A Corte impessoal garantidora de direitos.
Percebida como biruta aos ventos, ajustando jurisprudências em função de
circunstâncias políticas, tomando decisões de controle de constitucionalidade
sob a avaliação de impactos sobre esse ou aquele lira. Ora plataforma para
exercícios monocráticos de poder em nome da guilda e até da democracia, em
defesa da qual se chancelam justiceiros, e vão autorizados inquéritos sem fim e
sem objeto.
O Supremo, o tribunal garantidor, antes uma
altitude para invasão de prerrogativas, pulando o muro das competências alheias
onde avaliar existirem omissões — como se a omissão do Congresso não fosse
também expressão da democracia representativa.
E então o desfilar de
ministros-palestrantes que, em convescotes com autoridades cujo foro é o STF,
fazem lobby e concorrem entre si — publicamente, estampados nas manchetes —
para que seus apadrinhados sejam os escolhidos a esse e àquele cargo.
Uma Corte constitucional percebida —
perigosamente — como tribunal de pequenas grandes causas privadas-elitistas.
Percepção que desacreditará, desacreditado o juiz de garantias fundamental,
qualquer outro.
Excelente!
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