terça-feira, 29 de agosto de 2023

Carlos Andreazza - Com todas as vênias

O Globo

O Supremo finalmente votou sobre a constitucionalidade do juiz de garantias. Lei aprovada pelo Congresso em 2019, cuja aplicação estava suspensa — desde 2020 — em decorrência do já histórico (e desde já as minhas escusas ao ministro) monocratismo corporativista de Luiz Fux.

Um juiz segurando, por anos, o exame de ação acerca da validade de desígnio do legislador. Um juiz, sozinho, impedindo que a Corte constitucional cuidasse de informar se lei votada pelo Parlamento estava de acordo com a Constituição.

Interditava não apenas o trânsito pleno da atividade do Legislativo. Também boicotada — interrompida mais uma vez — a expressão colegiada-impessoal do tribunal, a que dá força à Corte que compõe, cujo plenário esvaziado contrasta com a forma desinibida como os togados progressivamente usam suas musculaturas individuais.

Fux foi voto vencido (vencido igualmente o abuso de poder), ainda que tenha reformado a própria derrota — a óbvia constitucionalidade da lei obviamente posta — para que não o expusesse tão isolado. Terminou o julgamento modulando para propor-defender que a implementação do juiz de garantias fosse facultativa, a depender de cada tribunal.

Perdeu também. O STF analisava a constitucionalidade da matéria. Sua função. Sendo constitucional, e sendo lei votada pelo Congresso como de estabelecimento obrigatório, obrigatória ser-lhe-á a aplicação. Ponto final. Ainda que seja — a ideia de limite — de difícil compreensão para mentalidades autoritárias empoderadas.

Ministros do Supremo (perdão) não podem tudo. Sempre poderão, largando a caneta que assina liminares, concorrer, via voto popular, a uma cadeira no Parlamento — o espaço deliberativo essencial, na República, para a reforma das leis.

O que é, em resumo, o juiz de garantias? Figura que cuidará do período de instrução do processo, da supervisão da coleta de provas e da autorização de medidas cautelares — etapa em que o magistrado tem contato quase exclusivo com elementos levantados pela acusação, o que poderia gerar algum grau de contaminação. A partir da denúncia oferecida, entrará em campo um juiz para tratar de sua eventual recepção e, em caso positivo, do julgamento em si.

Não existe legislação capaz de encarnar a panaceia de um sistema puro, imaculado, livre de distorções. A constitucionalidade do juiz de garantias deriva, sem maiores fantasias, do objetivo de seu advento: por meio da redução do risco de parcialidade nos julgamentos, assegurar — o próprio espírito da Constituição — o respeito aos direitos fundamentais dos investigados. Um ideal a perseguir. Uma meta, pois, constitucional.

Destaco trecho do voto de Luís Roberto Barroso:

— Bom ou ruim, gostando ou não gostando, acho que foi uma decisão legítima tomada pelo Poder Legislativo. De modo que, não havendo incompatibilidade com a Constituição Federal, nosso papel é acatar a vontade manifestada pelo legislador.

A passagem define a atribuição da Corte constitucional — faz lembrar o valor do comedimento, esse saudoso — e tem especial peso por ser Barroso, com todas as vênias, um habitual senador togado.

Passagem não desprovida de algum humor por haver o Supremo, mesmo numa rara votação em que — ao menos em discurso — colocou-se no lugar, modificado o texto aprovado pelo Congresso. Ou não terá o Legislativo determinado que o juiz de garantias sairia de cena somente após o recebimento da denúncia? Ah, os vícios...

Esse julgamento, a propósito de ampliar o alcance do debate, suscita reflexões de fundo, para além das pautas do dia. Porque já existe, no Brasil, desde há muito, literalmente em última instância, um juiz natural de garantias: o Supremo. O Supremo em sua natureza plenária: o juiz de garantias.

A Corte impessoal garantidora de direitos. Percebida como biruta aos ventos, ajustando jurisprudências em função de circunstâncias políticas, tomando decisões de controle de constitucionalidade sob a avaliação de impactos sobre esse ou aquele lira. Ora plataforma para exercícios monocráticos de poder em nome da guilda e até da democracia, em defesa da qual se chancelam justiceiros, e vão autorizados inquéritos sem fim e sem objeto.

O Supremo, o tribunal garantidor, antes uma altitude para invasão de prerrogativas, pulando o muro das competências alheias onde avaliar existirem omissões — como se a omissão do Congresso não fosse também expressão da democracia representativa.

E então o desfilar de ministros-palestrantes que, em convescotes com autoridades cujo foro é o STF, fazem lobby e concorrem entre si — publicamente, estampados nas manchetes — para que seus apadrinhados sejam os escolhidos a esse e àquele cargo.

Uma Corte constitucional percebida — perigosamente — como tribunal de pequenas grandes causas privadas-elitistas. Percepção que desacreditará, desacreditado o juiz de garantias fundamental, qualquer outro.

 

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