O Globo
Desde a Lei de Drogas (2006), ninguém é
preso pelo porte de maconha para
consumo próprio — se for da classe social “certa”. Mas há mais de 180 mil
presos por tráfico de drogas (25% da população carcerária total), muitos dos
quais jovens pobres condenados pela venda de pequenas quantidades de maconha.
O STF tem,
nos próximos dias, a oportunidade de frear a marcha dessa escandalosa injustiça
social. Tudo depende, porém, de um acordo sobre gramas.
O carinha A compra maconha do carinha C
para consumi-la. A lei vigente define os dois, A e C, como criminosos — mas
prescreve prisão apenas para C. Como, porém, na ausência de um flagrante da
transação, distinguir o consumidor (A) do “aviãozinho” (C)?
Segundo a lei, a polícia resolve o dilema por meio de uma avaliação do “local” e das “circunstâncias” da apreensão. Sob uma pátina superficial de coerência (A e C cometeram crimes), oculta-se uma cínica distinção de classe social: um fumará à vontade; o outro ingressará na universidade do crime instalada nas penitenciárias.
Nos Estados Unidos, diversos estados,
governados por democratas ou republicanos, legalizaram o comércio de maconha e
seus subprodutos, vendidos em lojas reluzentes nas áreas nobres das cidades.
Nossa elite política, à direita e à esquerda, furta-se vergonhosamente a
rediscutir a criminalização das drogas leves. O STF não pode substituir o
Congresso e, portanto, está condenado a agir nas margens, produzindo
interpretações legais.
O risco da reinterpretação em curso é
congelar a injustiça. A tese dominante, que já conta com quatro votos, vai
nessa direção. De acordo com ela, o consumidor não deve ser criminalizado, pois
todos têm o direito de fazer mal à própria saúde, mas o fornecedor deve ser,
pois prejudica a saúde dos demais.
Por essa via, remove-se a fina pátina
original da coerência e decide-se que, numa transação voluntária entre dois
adultos, um figura como vítima inocente e seu parceiro como pérfido criminoso.
O carinha C continuará a ser encarcerado por crime inafiançável, enquanto o
carinha A ficará livre até mesmo do registro de um crime em seu prontuário.
Os juízes têm, entretanto, uma chance de,
radicalizando o exercício da incoerência, suprimir as implicações perversas da
tese que elegeram. O julgamento foi interrompido justamente para propiciar a
exploração dessa hipótese, por meio da substituição do arbítrio policial pela
definição de uma quantidade de maconha capaz de distinguir o consumidor (não
criminoso) do traficante (criminoso). O sentido social e moral da decisão do
STF depende, literalmente, de uma balança de precisão.
Gilmar Mendes encarregou-se de formular uma
proposta quantitativa. Alexandre de Moraes sugeriu algo entre 25 e 60 gramas.
Gramas de injustiça: seriam números perfeitos para o consumidor de classe média
e, claro, uma inapelável sentença condenatória para os “aviõezinhos”. Tudo
permaneceria mais ou menos como está — sem a necessidade do arbítrio policial.
O Brasil de mentira celebraria o “avanço progressista”; a “guerra às drogas”
seguiria seu rumo sombrio nas periferias e favelas.
A alternativa é anular parcialmente a Lei
de Drogas por uma reinterpretação mais ousada. A balança do STF precisaria
mover-se na direção de quantidades de maconha suficientes para converter o
“aviãozinho” em “consumidor”, circunscrevendo a criminalização à elite do
narcotráfico. O gesto ilusionista dos magistrados teria o condão de paralisar o
maquinário do encarceramento em massa que só reforça as facções do crime
organizado.
Convivemos, todos os dias, com o
ilusionismo da barbárie. Fingimos que a “guerra às drogas” limita o uso de
entorpecentes, enquanto multidões de viciados acendem cachimbos de crack, à luz
do dia, nas ruas centrais de São Paulo. Prendemos garotos que vendem papelotes
de maconha nas esquinas, enquanto, em pleno porto de Santos, aos olhos de
todos, o PCC administra os embarques de uma tonelada mensal de cocaína
destinada aos mercados europeus. Nessas tristes circunstâncias, por que não
experimentar um pouquinho de ilusionismo civilizatório?
Não tinha pensado por esse prisma.
ResponderExcluirA questão central não se resolve, pois Lula é amigo das nações traficantes e Bolsonaro é o braço político das milícias.
ResponderExcluirDesde 2010 sabemos que a questão central é política e diplomática. Tem que pressionar Bolívia,Paraguai, Venezuela, Peru, Cuba, Nicarágua e ajudar a Colômbia. Sem isso enxugamos gelo, enquanto enterramos nossos mortos.
MAM