Folha de S. Paulo
Acossado por processos, ex-presidente
transforma campanha em plebiscito sobre democracia americana
Donald Trump não é burro como Bolsonaro.
Diante de seu quarto indiciamento, na Geórgia, pela tentativa de fraudar o
resultado das urnas do estado, sua campanha emitiu uma nota que diz o seguinte:
"Estas atividades dos líderes democratas constituem grave ameaça à democracia americana e são tentativas de despojar o povo americano de sua legítima preferência de voto para presidente. Chame-se isto de interferência nas eleições ou manipulação eleitoral, é um perigoso esforço da classe dirigente de suprimir o direito de escolha do povo." Mais que demagogia, encontra-se aí uma síntese do programa insurrecional da direita extremista.
A referência a "atividades dos líderes
democratas" mira a promotora democrata da Geórgia, omitindo o fato de que
o indiciamento foi decidido por um júri popular com base em depoimentos
devastadores de vários funcionários estaduais republicanos. A linha retórica de
Trump enterra a verdade factual sob o granito de uma "verdade
política" suprema: a democracia não passa de uma fachada do poder de uma
maléfica "classe dirigente". Por isso, o sistema judicial
funcionaria, efetivamente, como mecanismo de perseguição do Líder do Povo.
A inversão é patente. Trump replica à
acusação de que tentou fraudar as eleições de 2020 com a acusação de
interferência do governo Biden na campanha para as eleições de 2024. O núcleo
de sua mensagem: inexistem instituições estatais imunes à partidarização. A
esquerda tradicional aprendeu a usar a expressão "democracia
burguesa" para dizer que as democracias funcionam realmente como ditaduras
da classe dominante. Trump diz basicamente a mesma coisa, apenas substituindo a
"burguesia" por uma indefinida Elite (assim, com maiúscula)
"liberal" ou "esquerdista".
O discurso insurrecional dispensa o ônus da
prova. Desde a proclamação da vitória de Biden, Trump repete que as eleições
foram fraudadas. Juízes de diferentes instâncias rejeitaram tais alegações.
Pouco importa, já que os tribunais fazem parte da conspiração da "classe
dirigente". O ex-presidente prometeu exibir, segunda-feira, um
"relatório conclusivo" sobre as supostas fraudes na Geórgia.
Evidentemente, o espetáculo acontecerá numa coletiva de imprensa, não num
tribunal.
"Pântano de Washington" –eis o
nome, enredado nas brumas do mistério, que Trump cunhou para indicar a
conspiração da Elite contra o Povo. Nomear um inimigo invisível é truque
antigo. Há muito, demagogos de direita ou esquerda clamam sobre as artimanhas
demoníacas de um "Deep State". O tal do "Estado profundo"
chegou ao Brasil com Bolsonaro, que cometeu o erro tático de identificá-lo com
o STF, e em tom mais suave com Lula, que incorre em equívoco similar ao
identificá-lo com o Banco Central. Nunca se deve desenhar os contornos de um
inimigo poderoso que é tão ubíquo quanto oculto.
O truque condensa um programa de ação:
erradicar os contrapontos institucionais ao poder presidencial, instituindo uma
tirania da maioria. Durante seu mandato, Trump invocou em diversas ocasiões,
inutilmente, uma imaginária prerrogativa presidencial de fazer qualquer coisa.
Depois da derrota eleitoral, exigiu a "rescisão da Constituição" para
propiciar sua recondução à Casa Branca. Hoje, acossado por múltiplos processos
judiciais, transforma sua campanha em um plebiscito sobre a democracia
americana.
Trump só reconhece o tribunal das urnas –e,
claro, com a condição de que forneçam o resultado desejado. No lugar de uma
defesa jurídica, o ex-presidente calunia promotores e juízes, qualificando-os
como "tendenciosos", "corruptos" ou "dementes".
Os analistas do declínio das democracias alertam para a lenta erosão
institucional promovida por líderes populistas no exercício do poder. No caso
dos EUA, o perigo iminente é outro: um voto popular majoritário pela
"rescisão da Constituição".
Trump devia estar num hospício.
ResponderExcluirEle não rasga seu dinheiro! Deveria estar na cadeia.
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