Revista Veja
O liberalismo representa uma visão de mundo
menos óbvia que o populismo
Javier Milei causou sensação com seu desempenho nas primárias argentinas (leia a reportagem na pág. 52). Em parte, porque é um lobo solitário. Um “grito de guerra”, como diz o antropólogo Pablo Semán, o “que se vayan todos”, e faz mover os jovens dos bairros esquecidos da periferia de Buenos Aires. Mas a novidade é ser um “libertário”. Parte da imprensa apelidou Milei de representante da “extrema direita”, o que revela mistura de mau humor e preguiça intelectual. O mais curioso foi ver o sujeito dito como um “alto risco para a economia argentina”, como escutei em um programa de televisão. O peronismo vai entregando o país quebrado, inflação a 115% e a pobreza atingindo 40% da população. Mas perigo é Milei. As narrativas, desde sempre, definem o teatro da política. Nesse caso, dirão que ele foi instrutor de kama sutra e que dorme com seus cachorros, mas pouca coisa sobre fazer um programa de demissão voluntária no setor público e derrubar a carga tributária. Talvez isso tudo seja particularmente constrangedor por aqui, visto que andamos numa busca algo desesperada para aumentar impostos, enquanto abrimos concursos públicos como nunca e anunciamos o governo no “comando da economia”.
Um “liberal-libertário”, como se define
Milei, diz basicamente que a liberdade econômica importa, tanto quanto a
liberdade de escolher uma religião ou dizer o que pensa. E que cabe ao Estado
agir com menos arrogância, diante da iniciativa individual. Alguma aberração
nisso? De fato, a tecnologia vai abrindo cada vez mais espaços de
autorregulação, no mercado. O blockchain e as criptomoedas são um bom exemplo,
assim como a sharing
economy, ou “economia do compartilhamento”. Me lembro da conversa
sobre o “absurdo” que seria deixar um monte de carros circular transportando
pessoas, nas nossas cidades, sem licença das prefeituras. Hoje ninguém parece
muito preocupado com isso. Ainda me lembro da época em que os aeroportos “só
podiam ser estatais”. Hoje escuto a tese perfeitamente contrária. O mesmo vale
para as estradas, para o saneamento, a iluminação pública, os cemitérios e
mesmo nossos santuários ecológicos nos parques nacionais.
O programa de Milei mistura propostas
liberais e disruptivas, centradas em uma reforma do Estado argentino, e pontos
bem menos plausíveis, como o fechamento do Banco Central.
Ele diz que fará uma reforma trabalhista. Algum absurdo nisso? Segundo o
Ranking de Competitividade do Fórum Econômico Global, a Argentina tem o 132º
pior sistema trabalhista entre 137 economias. O absurdo é fazer a reforma ou
deixar do jeito que está? Ele diz que privatizará empresas públicas. Vamos
supor que ele consiga privatizar a TV estatal e as Aerolíneas Argentinas. Algum
fim de mundo aí? Para que exatamente o governo precisa dispor de uma emissora
de televisão e uma companhia aérea? Milei também promete custear a demanda, e
não a oferta de serviços de saúde e educação. Isto significa: financiar o
cidadão, e não as máquinas estatais. Muita gente faz drama com isso, mas é
exatamente o que fazemos com programas como o ProUni e o Bolsa Família. Nesse último,
governo deposita um recurso na conta das pessoas e cada um adquire os bens de
deseja adquirir. Poderíamos distribuir cestas básicas, como já se fez no
passado, ou criar uma rede de abastecimento estatal (alguém se lembra da
Cobal?). É como funciona em Cuba, com a Libreta. Lembro do dia em que visitei
um desses centros de abastecimento, em Havana. Me recordo do mau cheiro, o
aspecto lúgubre. E da funcionária, debochada, me dizendo: “É estupendo o
socialismo”.
No Brasil, enchemos a boca para falar da “escola
pública” e da “saúde pública”, sem nunca descuidar de colocar os filhos em uma
boa escola privada e dispor de um bom plano de saúde. Nossos alunos tiram as
últimas posições do Pisa, a cada três anos, mas quando surge alguma proposta
real de mudança, fazemos cara de inteligentes e resmungamos “não vai
funcionar”. A verdade é que nos habituamos com o status quo, que me surpreende
quando surge alguma força política disposta à mudança.
O que seria exatamente um “liberal-libertário”,
a condição de Milei? Na tradição brasileira, é comum a confusão entre o
liberalismo e variantes da moderna social-democracia. Dado nosso imenso atraso,
basta o sujeito ser a favor de alguma racionalidade no trato do dinheiro
público e apoiar privatizações perfeitamente óbvias para que seja considerado
um terrível liberal. No caso de Milei, a confusão vai por outro caminho. Será
tido como um “ultradireitista”, o que não passa de nonsense. A pauta da chamada
nova direita sempre foi uma mistura de nacionalismo, vezo iliberal e,
principalmente, foco no conservadorismo de costumes. O oposto do que propõe
Milei, cuja pauta é a abertura econômica. O “liberalismo por inteiro”, como
virou moda falar, e que incorpora a liberdade econômica, de empreender, dispor
de previsibilidade jurídica e igualdade de tratamento diante da lei, como parte
essencial da liberdade individual, tanto quanto as garantias no terreno
político e comportamental.
O liberalismo, nos dias de hoje, anda em um
caminho estreito. De um lado, é pressionado pelo conservadorismo, com sua
ênfase na regulação dos costumes; de outro, pela esquerda, com seu gosto pelo
intervencionismo econômico e pela obsessão identitária. Ambos oferecem algo
que, por definição, o liberalismo não pode oferecer: uma visão abrangente ou
“substantiva” sobre como devemos viver. O liberalismo vai na direção oposta.
Seu éthos é
feminista: meu corpo, minhas regras. Minha consciência, minhas regras. Valendo
o mesmo para as escolhas econômicas. Modelo cético, feito da “persuasão”, como
diz a impagável Deirdre McCloskey, da “suave retórica do convencimento”, e não
da coerção. Espécie de giro à Copérnico, que sugere caber aos indivíduos, não
ao Estado, escolher a escola, o hospital, o plano de previdência, e tudo aquilo
que define sua “busca pela felicidade”, como se lê na declaração da
independência americana. Tudo muito bacana, mas incrivelmente frágil em um
mundo ávido por “sentido”. E por exigir um exercício permanente de limitação do
poder.
O liberalismo é feito de “instituições
inclusivas”, na expressão consagrada pelo economista Daron Acemoglu, capazes de
proteger os interesses difusos da sociedade contra a malandragem dos grupos de
pressão e “capturadores de renda”. O primeiro de todos é o próprio sistema
político. Dias atrás li que os partidos se articulam para votar um fundão
eleitoral ainda maior do que o de 2022 para as eleições do ano que vem. Se isso
se confirmar (e não há por que duvidar), será coisa de 10 bilhões de reais, em
duas eleições. A pergunta é: por que não fazer? Por que não distribuir os 40
bilhões em emendas parlamentares? Qual seria mesmo o sentido da política sem a
primazia dos interesses da “casta”? No fundo, é esta a resposta que o
liberalismo precisa oferecer. Ele que representa um tipo de visão de mundo
menos óbvia do que a solução populista, a receita que diz “para cada
necessidade um direito”, como faz troça Milei.
A tarefa não é simples, e desconfio que
qualquer um que tentar fazer algo será imediatamente tachado como excêntrico,
perigoso, quando não uma aberração. Mas posso estar enganado. Os próximos meses
do debate político na terra do tango e do escritor Jorge Luis Borges, quem
sabe, nos sugiram alguma resposta.
*Fernando Schüler é cientista político e
professor do Insper
Publicado em VEJA de 18 de agosto de
2023, edição nº
2855
Pode dar certo ; pode dar errado...
ResponderExcluirPoucos de nós conhece Javier Milei para ter algum juízo sobre o que ele pode e não pode.
O que o candidato argentino propõe é inovador. Espero que Javier Milei tenha conhecimento adequado e consistência do que propõe e não seja um experimentador aventureiro. A Argentina chegou a uma situação tão desesperadora por culpa principalmente do populismo Kirchneirista que alguma inovação precisa ser tentada. E a Argentina acabou se transformando em um laboratório oportuno para tentativa de desrupção.
Preciso repetir:: espero muito que o que Javier Milei propõe seja mais que uma formulação alternativa e que ele tenha consistência técnica e política para liderar a ruptura que propõe.
Com o eleitoralismo do lulismo e do bolsonarismo na economia eu temo muito que nós também tenhamos que apelar para alguma proposta tão disruptiva.
Excluir