O Globo
Para Kissinger, militares golpistas eram
‘um bando de incompetentes’ por não terem conseguido impedir a diplomação do
eleito
Peter Kornbluh é incansável no seu pacto
com a verdade e a História. Aos 67 anos, continua a não dar sossego a
ditaduras, ditadores e ao governo que mais vezes incentivou a treva em terras
estrangeiras — os Estados
Unidos. Além de pesquisador sênior do National Security Archive
(NSA), instituição que obtém, analisa e publica documentos secretos do governo
americano graças à Lei de Liberdade de Informação, Kornbluh também dirige o
Projeto de Documentação sobre o Chile, da mesma NSA. Às
vésperas do 50º aniversário do feroz 11 de setembro de 1973 chileno, ainda
resta muito a desenterrar sobre o golpe militar que matou, prendeu ou torturou
pelo menos 40.018 pessoas. Mas Kornbluh tem método. E paciência. De garimpo em
garimpo, ele desenterra novos documentos.
Semanas atrás divulgou a transcrição de um telefonema do então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, a seu assessor de Segurança Nacional, Henry Kissinger. Datado de 15 de setembro de 1970, o telefonema contém comentários de Nixon sobre seu encontro de véspera, ultrassecreto, com o todo-poderoso Agustín Edwards — dono do maior conglomerado de mídia do Chile. (Contexto: dez dias antes desse encontro, o socialista Salvador Allende conseguira surpreender meio mundo derrotando por estreitíssima margem o ultraconservador Jorge Alessandri. Pela legislação da época, o Congresso chileno precisava ratificar o resultado das urnas, abrindo o caminho para o presidente eleito assumir o Palacio de la Moneda.)
Edwards tinha ido a Washington justamente
para arredondar com o governo Nixon o plano em curso que impediria esse rumo da
história: as Forças Armadas chilenas assumiriam o poder, dissolveriam o
Congresso, e Allende não seria empossado. Soa familiar? Os conspiradores
receberiam seguro de vida, armamentos e munição, além de garantias “claras e
específicas de não serem abandonados ou postos no ostracismo” e US$ 50 mil em espécie.
Tudo cortesia da CIA. O plano incluía sequestrar o comandante em chefe do
Exército, general René Schneider, considerado um entrave constitucionalista.
Só que deu tudo errado. Em novo telefonema
de Nixon para Kissinger, desta vez já em outubro, o ocupante da Casa Branca
pergunta:
— O que está acontecendo no Chile?
Kissinger respondeu ter havido um
revertério para pior. O planejado sequestro do general, a dois dias da
diplomação de Allende, fora um fiasco — a vítima acabou sendo mortalmente
ferida à bala, e a população condenara a ação.
— O passo seguinte — continuou Kissinger —
deveria ter sido a tomada do poder, mas também isso não ocorreu. Provavelmente
agora é tarde demais.
Concluiu, com desprezo, que os militares
golpistas eram “um bando de incompetentes” por não terem conseguido impedir a
diplomação do eleito. A partir daquele 24 de outubro de 1970, em nenhum momento
o magnata Edwards, os militares chilenos, a CIA, Kissinger ou Nixon deixaram de
tramar, por um só dia, a queda do socialista dos Andes. Era só questão de
tempo. O golpe veio nas primeiras horas do 11 de setembro de 1973, feroz,
brutal, sanguinário. Durou 17 anos e teve no general Augusto Pinochet seu
ditador-modelo: corrupto, obcecado e desumano.
Entre os múltiplos eventos idealizados para
marcar os 50 anos daquele trauma está uma edição em espanhol do trabalho de
Kornbluh, pela Catalonia Books chilena: “Pinochet desclasificado: los archivos
secretos de Estados Unidos sobre Chile”. Um documentário em quatro partes,
baseado no esforço do pesquisador para desenterrar a documentação secreta do
papel dos Estados Unidos na trama, também será transmitido por uma grande
emissora de TV do país.
— O Chile representa uma das mais infames
operações clandestinas da CIA — diz Kornbluh —, pois é onde você tem um elo
explícito de um presidente dos Estados Unidos ordenando a derrubada de um
governo democraticamente eleito.
Simples assim. O atual presidente
chileno, Gabriel Boric,
já solicitou ao governo do democrata Joe Biden a liberação de documentos da
Casa Branca referentes ao Chile nos anos 1973 e 1974. Pedido difícil de
atender, justamente pela ausência de escrúpulos que a papelada ainda poderá
revelar.
A ditadura chilena caminhava para seu 13º
ano de abusos quando Boric nasceu, portanto o atual ocupante do La Moneda nada
testemunhou. Por isso mesmo, quer que sua geração tenha acesso pleno e
transparente a um passado nacional que muitos já tentam adulterar. De um ano
para cá têm surgido postagens de extremistas rebatizando o 11 de setembro de
“escolha pela liberdade” feita por chilenos patriotas. Soa familiar?
Pela mesma razão, recomenda-se a leitura
mais completa sobre a contribuição da ditadura brasileira ao golpe e à
repressão da era Pinochet. “O Brasil contra a democracia – A ditadura, o golpe
no Chile e a Guerra Fria na América do Sul” (Companhia das Letras, 2021), do
jornalista e analista internacional Roberto Simon, é leitura obrigatória para
que esse capítulo trevoso da História do Brasil também seja corretamente
aprendido.
Viva Gabriel Boric!
ResponderExcluirViva os democratas chilenos!
▪Gabriel Boric está aí para mostrar a Lula e ao PT o que é realmente ser "de esquerda" e ser democrático e para mostrar a Kissinger o que não é ser "de direita" e democrático.
Viva Gabriel Boric!
Viva o Chile Constitucional!
(No Chile, já antes de Boric, Allende foi para todos um exemplo do que é ser "de esquerda", e não ser um populista rastaquera; corrupto e apoiador de ditaduras).
Muito bom o artigo.
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