domingo, 27 de agosto de 2023

Paulo Fábio Dantas Neto* - Sobre temas que mais importam

Sei que o tema líder de bilheteria entre os que gozam da reputação de politizados é Bolsonaro e seus podres poderes pretéritos. Nada contra essa PPP. Tudo joia! Mas teimo em falar da PPP dos palpáveis poderes políticos atuais, como fiz nos três artigos mais recentes (10.07, de 29.07 e 06.08). O Legislativo e o Executivo (nessa ordem de relevância quanto a atuais poderes de fixar pautas governamentais) tal como, a meu ver, eles estão sendo exercidos. O jogo corre solto enquanto se respira, em ambientes onde, em tese, “tudo é política”, um agosto que é um pós-outubro sem fim. O congelamento da agenda do país no tom da disputa do ano passado virou programa político. Não há, por ora, programa alternativo a este. (Quase) tudo e todos parecem aderir, exceto a solitária realidade, obstinada adversária das vontades.

Admito que a teimosia se escora numa impressão: a de que o país está sendo tratado como público-alvo de contos de carochinha. Usando essa imagem não quero ser injusto com a de folclóricas senhoras contadoras de fábulas que não incorrem no vício da mentira, mas na virtude da simpatia. Conhecedoras da psicologia infantil, seriam artistas da bondosa arte terapêutica de ministrar (ops!) leveza através da fantasia. Na política, contudo, essa arte benévola, agindo sobre as pessoas sem a mediação realista de agentes responsáveis pela vida em comunidade, não raramente provoca efeitos colaterais perversos. A dissimulação continuada do mundo real, agindo sobre cada indivíduo eleitor, vira uma mentira política, com o auxílio eficaz da propaganda e o público-alvo das bondades termina como vítima de autoengano. A responsabilidade por essa contravenção de uma intenção simpática não é das carochinhas, tampouco de mentes infantis, ou infantilizadas, cuja imaginação as fábulas políticas reforçam. Ela é de políticos adultos que permanecem silenciosos na sala, tirando partido da fantasia para fins estratégicos privados ou para praticarem a autoindulgência como discurso público. Uma abstenção da elite política que, quando se lambuza na tentação do populismo para dissimular sua condição de elite, aliena o seu mister.

Os ganhos políticos e eleitorais dessa atitude são, no entanto, duvidosos. Fora da bolha que a política controla, a realidade da miséria social e moral vinga-se do desprezo com que é tratada. Produz, não uma massa de vítimas de autoengano, mas um arquipélago de seres desenganados e aparentemente desprovidos de autoidentidade socialmente visível, como pessoas, ou como indivíduos genéricos. Seu comportamento político é imprevisível. Se puder ser adivinhado por alguma magia, não haverá notícia simpática à democracia. Essa impressão pode não ter força de verdade, mas assenta no que se pode ver a olho nu nas cidades brasileiras. As mesmas cidades onde convivem cidadãos e onde eleitores irão às urnas daqui a um ano, em eleições vistas como importantes pelos olhos racionais de atores e analistas da política. O que a experiência urbana tem a dizer para tornar razoável - e não fabulosa - a razão política, ainda mais quando outras razões atuam e atuarão organizadas nos mesmos territórios?  

Um interlocutor amigo compartilhou hoje comigo um vídeo documentando uma cena “urbana” (aqui muitas aspas) que, pedindo licença pelo lugar comum, ele chamou de "puro suco de Brasil". Na manhã da última quarta-feira, no bairro de São Caetano, em Salvador, um caminhão de carga tombou e esmagou um homem, Anderson Conceição, que morreu de imediato, na via pública. Ato contínuo uma grande aglomeração de pessoas precipitou-se, com disposição de saque, em direção à carga entornada. Dando tiros para o ar, a polícia conseguiu, a princípio, armar um cordão de isolamento. Contido o primeiro impulso, a população ficou aguardando, no cenário da morte onde o corpo da vítima permanecia, a liberação das mercadorias, até que o realismo da empresa dona dos produtos estragados e os apelos de porta-vozes dos aglomerados obtiveram o aval policial para a coleta popular do espólio. O aval soou não como sino anunciador de uma ação coletiva pacífica, mas como campainha de ringue ou uma trombeta em antigos campos de guerra. A disposição de saque deixou de ser ataque coletivo à carga para ter aparência de luta interna, de todos contra todos. Cenas laterais não carecem de descrição.

Na contramão das fábulas e das boas intenções das carochinhas, o que há para hoje em muitas partes do nosso tecido social é essa miséria moral e material, pão dormido de cada dia, que o diabo amassa e entrega. Um desafio diário à potência persuasiva de quem segue difundindo contos de carochinha, como se por milagre eles pudessem criar brilhos infantis em olhos de almas humanas adulteradas pela história contínua de vidas reais.  Que razão estratégica pode se interpor à crueza dessa experiência?

Ainda que se consiga identificar veneno e serpente, não há como desfritar seus ovos nem fazer com que retornem ao ninho. Inútil argumentar contra quem está convicto de que o infortúnio decorre de ação voluntária do “mercado”. A divergência é lateral, sobre o grau maior ou menor de condicionamento sistêmico ou de coincidência entre intenções e resultados. Mesmo quem não vê nos distintos fenômenos da desigualdade, da exploração, da exclusão, da pobreza e da miséria social, marcas de vontades políticas enraizadas em interesses econômicos determinados, pode admitir (crescentemente admite) que a instituição chamada mercado possui dinâmica indutora, senão promotora, daqueles fenômenos.

Esse reconhecimento civiliza o “mercado” em grau bastante para entender-se, positivamente, no plano da política, com o governo de um presidente recém-eleito que acenou em palanque para uma prioridade ao social. Trata-se de pura constatação de um fato, a pretensão de explicação sociológica aqui é zero. Do mesmo modo que é zero a de explicar a razão desse presidente - apesar de manter intacta a retórica da campanha e eleger o presidente do BC como o agente de todas as maldades do mercado - ter nomeado um homem de diálogo para o ministério da Fazenda e deixado prosperar um ensaio de política fiscal fortemente adaptado às preferências de um congresso alinhado com as razões “do mercado”.

É apenas intuitivo pensar que o acordo, além de um mandamento das urnas legitimadoras de ambos os polos de poder, tenha algo não claramente demonstrado de imperativo sistêmico. Isso de tal sorte que a experiência de uma sociabilidade com crescentes traços de barbárie sugere à razão política uma imunização passiva, o princípio do soro antiofídico. Se o estado das “coisas como elas são” produz iniquidades sociais, o que aconteceria se a política pudesse – como fábulas de carochinha sugerem – usar razões suas para neutralizar ou orientar a força do mercado e derrotar os seus agentes políticos que, supostamente, querem manter as iniquidades intactas? Na hipótese de que tais coisas pudessem ser modificadas e deixassem de ser como são, qual seria o seu novo modo de ser?

Todos os elementos disponíveis para análise indicam que a esquerda que controla o Poder Executivo não sabe, pois o modo-de-ser das coisas que propala como projeto é o antigo modo que vigorou até 2015. O Brasil inteiro sabe, pelas experiências traumáticas vividas desde então, como reagiram, àquele modo-de-ser, a sociedade emersa, o público de contos de carochinha e os seres humanos desenganados. Nada, absolutamente nada, autoriza pensar que a reação do país combalido que sobreviveu ao trauma seria mais simpática diante do vácuo. O que hoje é iniquidade teria tudo para tornar-se puro crime.

Para a razão prudencial, antiofídica, que precisa socorrer a esquerda, a missão da política não é voltar a imaginar contrapontos ao mercado, mas ferramentas que aliancem instituições de estado e de mercado. Há espaço para acordos em torno de objetivos claros e soluções negociadas de políticas públicas que aumentem o nível de confiança da cética sociedade emersa, faça o público tradicional dos contos de carochinha transitar, gradualmente, da crença ingênua para uma solidariedade também mais críticas e os arquipélagos de desenganados sustentarem elos, hoje bastante tênues, com a sociedade nacional.

Nenhuma dessas reflexões prudenciais está ausente das palavras públicas do ministro da Fazenda e do núcleo principal da área econômica do governo. Mesmo nas falas do presidente a ambiguidade notável é entre pragmatismo econômico e populismo político e não entre conciliação e ruptura. Ainda que para exercer o populismo político cerque-se de quadros de mentalidade polarizadora entre elite e povo, não se pode ver em Lula uma atitude disruptiva. A cada fricção já se espera um recuo na esquina seguinte. O problema é que nada está ausente, mas nada também é estável. O risco é alto pela declinante credibilidade e eficácia desse pêndulo, no jogo político atual.  O maior empoderamento do outro polo - o Legislativo – reduz a paciência e consequentemente, a resignação dos atores políticos em geral (inclusive na sua cozinha partidária) para com o ioiô lulista. O mais novo teste de paciência ameaça a trajetória até aqui bem sucedida do ministro Haddad em sua interlocução com o Congresso e as instituições do mercado, atores que se mostram bastante articulados quanto à pauta econômica do país.

Uma inflexão gradual pode ser observada há algumas semanas, no discurso público de Haddad, mais ou menos a partir da votação do arcabouço fiscal na Câmara, quando ele passou a acenar com mudança nas regras do IR, medida passível de ser vetada pela maioria do Congresso. Deixou em seguida “vazar” uma aparente incontinência verbal contra o acúmulo de poder pessoal do presidente da Câmara. E agora, alterna com a ministra Simone Tebet recados ao Congresso na linha de que cortes de despesa podem ser feitos em áreas importantes se a Câmara não tiver a mesma boa vontade do Senado na concessão ao Executivo de novas fontes de receita. Parecem querer produzir pressões de ministros sobre suas bancadas, de corporações e eleitores de pautas sociais sobre parlamentares suprapartidários.

Acontece que, no novo contexto, atores do Legislativo têm espaço político e meios mais eficazes não só de arquitetar chantagens sobre o Executivo como de revidar as que recebe. Os acenos de corte de despesas sociais como resposta à não aprovação de mais impostos foram respondidos na Câmara num tom que pode intrigar a área econômica do governo com a Faria Lima. O argumento, ao que parece amplamente compartilhado no Congresso, é que um governo que recebeu, antes mesmo da posse, a PEC que desejava, foi bastante contemplado na reforma tributária e ainda obteve apoio para aprovar mudanças nas regras do CARF não tem razões para cogitar cortes em despesas essenciais antes de “cortar na própria carne”. Muito menos transferir o ônus político para o setor privado por ele não aceitar os impostos. Ainda segundo essa linha argumentativa, essa “demagogia” feriria o pacto entre Estado e mercado. E para evitar isso, o óbvio ponto de pauta insinuado no congresso como solução fortalecedora do pacto – uma reforma administrativa - coloca o Executivo em polvorosa pela repercussão eleitoral negativa perante parte importante da base eleitoral do presidente e partidos de esquerda. A depender do andar da carruagem e caso prossiga a inflexão de Haddad a uma posição mais dura com o “mercado”, o jeito será distribuir, com o centrão de Lira, posições no Executivo capazes de moderar esse ânimo reformista inédito em áreas políticas onde o patrimonialismo sempre foi bússola.

Porém, o que mais chamou a atenção, como contraste, foi a reação de Arthur Lira à suposta incontinência verbal de Haddad sobre o seu poder pessoal na Câmara. Acusando o soco, perdeu por algumas horas a linha institucional em que vinha se aplicando com surpreendente disciplina e chegou a ameaçar travar a votação do arcabouço fiscal, que retornara do Senado. Como assim? O arcabouço era uma pauta que interessava mais ao congresso do que ao presidente. Foi no fundo uma contrapartida em obrigações do governo à PEC da transição, essa sim um interesse forte do Executivo. Lira reagiu emocionalmente e isso não deve ter agradado aos novos amigos que andou fazendo no topo do PIB. Talvez a aproximação da sua sucessão esteja fazendo-o perder a calma. A síndrome de mandachuva nublou ali o político. Só amadores levariam a sério a bravata fantasiada de chantagem.

Quanto ao deslizamento de Haddad, merece ser acompanhado, noves fora Lira. Ainda não dá para saber se é um movimento voluntário, feito a partir de um cálculo racional de quem tem um projeto eleitoral de difícil convivência, a longo ou mesmo a médio prazo, com o que por metáfora se chama de "Faria Lima"; ou se se trata de um enquadramento doméstico com que teve de passar a lidar. Nessa última hipótese, tanto poderá ser enquadramento vindo "de cima", ou efeito do ambiente controverso do seu partido, onde parece crescer o espaço da esquerda (efeito Pochmann?) e criar aspirações rivais à sua.

Seja como for, a inflexão torna mais tenso o campo de manobra de Simone Tebet e pode levá-la a reboque para uma inflexão análoga.  Não deve ser coincidência que ela, nas últimas semanas, esteja sendo mais enfática em demonstrações ostensivas de fidelidade a Lula, mas não apenas nisso. Também na sintonia com argumentos que geralmente emanam da esquerda. Se o PT encara, como se diz, o governo como arena de disputa, Tebet parece estar tentando sair da linha de tiro onde fica quem se mostra como potencial contraponto. Ela tem insistido em que a linha do governo é "uma só", o que tangencia uma posição de aceitação de uma hegemonia. No seu discurso na posse do novo presidente do IBGE, ela bateu essa dupla continência, ao chefe do governo e à realidade do efeito Pochmann.

Quanto à área política do governo, é possível que a protelação da reforma ministerial, além de desacordos internos, reflita também um recolhimento de parte da corda excessiva que foi dada a Arthur Lira, desde antes da posse de Lula. É o que insinua um comentarista como Reinaldo Azevedo, hoje muito convergente com narrativas e prioridades de pauta do governo. Ainda que seja verdade, Lula precisa sinalizar desde já aos parlamentares qual será seu interlocutor privilegiado na Câmara no pós-Lira.

Desde a negociação da PEC da transição, é difícil entender bem por que Lula opera sem começar a construir uma interlocução alternativa na Câmara, não para confrontar Lira, mas para contê-lo, pela política. Esta coluna vem manifestando esse estranhamento desde janeiro. Repito aqui a impressão, já antes registrada, de que Lula crê que não apenas pode superar Lira como, ao fazê-lo, recuperar o poder de agenda que o Executivo tinha na plena vigência do presidencialismo de coalizão. Mas é difícil o congresso lhe entregar isso. Nesse ponto específico, o problema de Lula não será só Lira. O sucessor deste, seja quem for, não será cooperativo com o governo naqueles antigos termos. Os novos termos já precisam ser negociados, mas não se percebe nem fumaça disso. Pode estar em curso nos bastidores, terreno estrangeiro para esta coluna. Já na imprensa, que mantém com os bastidores muitos vasos comunicantes, revelou-se o contrário: que reunião discreta, fora da agenda, ocorreu com o próprio Lira.

Esse ponto é relevante, deve ser levado a sério, sem tom de fofoca. Da mesma maneira que o esboço de uma viagem populista do presidente da República no trato do drama social do país poderia pôr em perigo o tecido da nossa democracia, nas ruas e nas urnas, assim o faz também o viés patrimonialista do campo político imantado por Arthur Lira na Câmara dos Deputados. Nesse caso, a incerteza democrática reside nas urnas, mas não se pode subestimar outros efeitos nefastos da hipótese de a elite política abrir novos flancos para o retorno do protagonismo de uma lógica faxineira.

De certo modo, o país já vive um clima insensato de Lava-Jato em feitio de revide. Todo o cuidado é pouco com essa tentação de afogar os temas mais relevantes e urgentes das pautas política, econômica, social e ambiental do país numa policialização catártica e estéril. Ainda mais quando já se fixou plenamente na sociedade, tanto a convicção de que houve uma tentativa de golpe, quanto a de que ela fracassou. É hora de a política cuidar do país sequelado e entregar o extremismo à polícia e à Justiça. Se alguma preocupação ou vigilância maior deve haver é para que não se cometa, com a extrema-direita, golpista, os excessos e as arbitrariedades que desmoralizaram a Lava-Jato.

Essa a maior razão da recusa dessa coluna em se ocupar com podres poderes pretéritos.  A limitação do poder pessoal é desafio atual e perene, que não cessou com a derrota e a inelegibilidade de Bolsonaro, nem cessará com sua punição. Tratar do presente tem, ademais, função preventiva de futuros mitos.

*Cientista político e professor da UFBa

Nenhum comentário:

Postar um comentário