sábado, 12 de agosto de 2023

Eduardo Affonso - A Lua e a lama nos obituários

O Globo

Respeito consiste, principalmente, em não fazer do morto, de sua trajetória, um pretexto para desfilar nossos preconceitos

Fernando Pessoa já ensinava, por meio de Ricardo Reis:

— Para ser grande, sê inteiro: nada/Teu exagera ou exclui.

Vale para quando ostentamos virtude no finado Twitter; vale para quando não deixamos entrever sequer um fiapo de nossa vidinha besta no Instagram. Deveria valer também para quando nos cabe falar da vida alheia —principalmente de uma vida que acaba de se encerrar.

Morte não implica a canonização automática do morto. Não é remissão dos pecados, não concede indulgência plenária. Não transforma água em vinho, rascunho em arte final. Mas respeito é bom — e não se confunde com bajulação. Entre a hagiografia e o vilipêndio, há bom espaço para uma análise equilibrada.

Respeito consiste, principalmente, em não fazer do morto, de sua trajetória, um pretexto para desfilar nossos preconceitos ou para montar, em cima do caixão alheio, um palanque para nossas causas.

No dia mesmo da sua morte — aos 26 anos, num acidente aéreo — uma das artistas mais populares do país foi tratada como uma “gordinha” que “brigava com a balança”. A família ainda não havia recebido o corpo para o sepultamento, e esse corpo já tinha, no obituário, um peso exagerado.

Outra cantora ainda era homenageada por milhares de fãs em seu velório, e suas canções reverberavam na memória dos milhões que a tiveram como trilha sonora da infância, da juventude, da maturidade — mas achou-se por bem dar destaque ao abuso de drogas e à crença em discos voadores (sem deixar de mencionar um estupro, o sexo livre e uma série de anedóticas transgressões).

Da apresentadora que fez história na televisão, coube salientar que escondia a idade. Da grande atriz, de papéis memoráveis, que não se casou e praticou aborto.

Odiadores de plantão fazerem isso, na internet, é de esperar. Que a grande imprensa entre nessa — com manchetes caça-cliques e reportagens talhadas para gerar polêmica — é deplorável.

A intenção talvez seja naturalizar comportamentos (“Está vendo? Pessoas boas também abortam”; “Dizem que drogas destroem a capacidade cognitiva, mas olhaí: viveu até os 75, perfeitamente lúcida”). O resultado, porém, acaba sendo depreciar o artista e sua obra, além de ajudar a perpetuar o estigma que envolve certos assuntos.

Daqui a alguns anos, haverá espaço nas biografias para os detalhes escabrosos, as misérias, as fofocas. Ou, a depender do biógrafo, para a construção daquele vasto painel que retrata o personagem em toda sua humanidade. Mas, no dia da morte, na dor do luto, tirar o foco do legado para falar de gordura, vício, idiossincrasias ou abortos soa apenas como mesquinharia, sordidez. Como exercício do pequeno (ínfimo) poder de apontar os pés de barro do ídolo, de mostrar irreverência trazendo para a manchete o que não deveria passar de nota de rodapé.

Há nisso um método cruel: a vítima preferencial têm sido as mulheres. Não se encontrará nada parecido nos obituários de Erasmo Carlos, Zé Celso, João DonatoAderbal Freire-Filho. A estes, couberam o merecido reconhecimento do valor artístico e as manifestações de pesar.

— Põe quanto és/No mínimo que fazes — escreveu Pessoa. Grandes artistas seguem o conselho. Jornalistas e editores também — só que alguns têm posto o pior de si.

 

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