sábado, 26 de agosto de 2023

Eduardo Affonso - Neutralidade tendenciosa

O Globo

Por que estados e municípios teriam autonomia na definição do que é certo ou errado no idioma oficial do país?

Apesar de o STF já ter decidido que diretrizes educacionais são competência privativa da União, a Câmara de Vereadores de Belo Horizonte resolveu, na semana passada, vetar o uso de linguagem neutra nas escolas do município.

O ministro Edson Fachin, relator do processo em que foi derrubada lei similar (do estado de Rondônia), entendeu que banir o uso de uma linguagem que “combate preconceitos linguísticos” configura censura prévia e confronta a liberdade de expressão:

— Proibir que a pessoa possa se expressar livremente atinge sua dignidade e, portanto, deve ser coibido pelo Estado — afirmou.

Uma no cravo, outra na ferradura.

Deve ser garantido a qualquer um o direito de se manifestar sobre o que quiser, como bem entender. E os brasileiros já fazem isso, de forma ampla, geral e irrestrita, com gírias, estrangeirismos e neologismos, sem vírgula no vocativo, sem o R do infinitivo, sem que o adjetivo concorde com o substantivo ou o verbo com o sujeito, variando os advérbios e flexionando o verbo “haver” quando ele é impessoal.

Outra coisa — que nada tem a ver com censura ou indignidade — é assegurar que a escola continue a ser onde se ensina (ou se tenta ensinar) a língua-padrão. É ela que nos possibilita compartilhar os mesmos livros e dicionários e nos valer das mesmas regras de ortografia e sintaxe na produção acadêmica, jornalística, literária — ainda que mantenhamos a diversidade da fala coloquial. Graças a isso, O GLOBO pode ser lido — e entendido — do Caburaí ao Chuí.

Estados e municípios não têm poderes para criar moeda própria ou leis sobre Imposto de Renda ou sistema eleitoral. Por que teriam autonomia na definição do que é certo ou errado no idioma oficial do país?

(Só dois estados venceram a União nessa matéria: a Bahia, que manteve o H, apesar da reforma ortográfica de 1911, e o Acre, cujos habitantes rejeitam ser acrianos, como manda o acordo de 1990, e continuam acreanos.)

A linguagem neutra propõe que o gênero gramatical (binário e arbitrário) se ajuste à identidade de gênero do falante. Um aluno não binárie seria referido como alune — o que equivale, por extensão, a uma criança do sexo masculino ser tratada como crianço e a um cônjuge do sexo feminino como cônjuja. Essa mudança, a crer no ministro Fachin, traria dignidade a cerca de 2,4 milhões de brasileires — e a dezenas de milhões de pessoos e pessoes que se consideram vítimos e vítimes de um idioma que insiste (sob o disfarce dos substantivos sobrecomuns) em nomeá-los/les no feminino. Isso não é ir contra o preconceito: é ir contra a própria língua.

O Acordo Ortográfico de 1990 prevê a elaboração de um vocabulário comum, que definirá a ortografia oficial a ser usada nos países lusófonos. O que temos hoje é o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp), elaborado (e constantemente atualizado) pela Academia Brasileira de Letras. Dele não constam amigue, alune, criature etc.

É inútil que vereadores ou deputados proíbam o ensino fora das normas (o Ministério da Educação já cuida disso) ou que militantes queiram impor seu idioleto. Os edis de BH podem procurar temas mais relevantes: haver (ou não) mineires e belo-horizontines independe da sua vontade.

 

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