O Globo
Música explode com o relato da vida dura a
certas ideias conservadoras
Uma canção folk escrita por um pequeno
fazendeiro e ex-operário do estado americano da Virgínia atingiu a primeira
posição no ranking da Billboard, principal revista da indústria musical.
“Rich Men North of Richmond” foi escrita e interpretada por Oliver Anthony
(nome artístico) e registrada numa gravação amadora. O sucesso da música, que
combina o relato da vida dura da classe trabalhadora a certas ideias
conservadoras, reacendeu o debate a respeito de a esquerda americana estar
perdendo para a direita a influência política sobre os trabalhadores,
especialmente para o segmento branco das cidades do interior.
“Rich Men North of Richmond” fala da realidade de trabalhadores que vendem a alma, desperdiçando a vida, “trabalhando o dia todo” por “um salário de merda” enquanto os ricos que vivem ao norte de Richmond (cidade ao sul da capital americana, Washington) querem o “controle total”. Poderia seguir o roteiro tradicional da canção de protesto de esquerda, denunciando as condições dos trabalhadores e culpando os patrões pela ganância, mas, logo na segunda estrofe, dobra à direita.
O salário de merda não vale nada porque “é
taxado sem fim”. Os políticos, em vez de cuidarem dos mineiros, estão cuidando
dos menores (de idade) “numa ilha num lugar qualquer” — alusão à ilha do
bilionário Jeffrey Epstein e às teorias da conspiração de que elites políticas
estão envolvidas com redes de pedofilia. A canção segue contando que, enquanto
há gente na rua sem ter o que comer, “obesos mamam” nos programas sociais para
comprar biscoitos de chocolate —alusão aqui à welfare queen, o mito dos anos Reagan
da mulher obesa indolente que frauda programas sociais para viver sem
trabalhar. O refrão fala sobre viver num “mundo novo”, mas com “alma antiga”,
como se não fosse possível se adaptar aos novos tempos, e lamenta “o que o
mundo se tornou para gente como eu e para gente como você”.
Virou hit e ultrapassou canções de Taylor
Swift, Olivia Rodrigo e Dua Lipa. É a primeira vez na História que um artista
chega ao primeiro lugar sem jamais ter ocupado qualquer outra posição na parada
da Billboard. O sucesso súbito de um cantor amador com inclinações
conservadoras despertou a desconfiança de ativistas e críticos de esquerda, que
o atribuíram a uma orquestração da direita. É fato que grandes influenciadores
de direita promoveram a música, e parece ter havido uma campanha incentivando a
compra de downloads — forma obsoleta de acessar música, mas que tem um peso
grande na nota que compõe o ranking da Billboard.
Os críticos de esquerda esquecem, porém,
que todos os outros produtos comerciais no ranking também foram promovidos por
influenciadores (por razões econômicas, e não políticas) e que o incentivo para
comprar downloads para subir a nota é uma prática nas comunidades de fãs — como
os de K-pop. A explosão da música pode ter sido inicialmente impulsionada pela
militância de direita, mas seu sucesso é genuíno. A canção tem uma melodia
cativante, é de uma simplicidade singela e foi cantada com honestidade e
paixão. É autêntica.
Oliver Anthony deu declarações esclarecendo
que, politicamente, se coloca “bem ao centro” e que desgosta igualmente dos políticos
dos partidos Democrata e Republicano. Seu conservadorismo não é sentido como
uma opção, é “natural”.
A força de “Rich Men North of Richmond”
está em sua simplicidade e autenticidade, em ser uma canção que parece mesmo
escrita por um pequeno fazendeiro do interior desiludido e indignado. Sua
política é um pouco confusa como a cultura política das classes populares. E
sua coloração política é mais bem explicada pelo alcance do conservadorismo na
classe trabalhadora americana que por alguma armação.
Críticos de esquerda têm denunciado apaixonadamente a estupidez política de, simultaneamente, reclamar dos “salários de merda” e dos programas sociais que aliviam a pobreza, mas têm se esforçado pouco para entender por que, em certos meios, a forma conservadora tem se tornado a linguagem espontânea para expressar a indignação social.
Muito bom
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