O Globo
Trata-se de tirar os sapatos sem tirar as
meias
O anarcocapitalista Javier Milei surpreendeu
arrebatando 30% dos votos nas primárias presidenciais argentinas. A eleição
será em outubro, e muita água passará debaixo da ponte. Mesmo assim, num país
com 115% de inflação anual, o Banco Central (que ele promete fechar) subiu os
juros para 118%; em poucos dias, o dólar disparou, e os títulos da dívida argentina despencaram.
A encrenca argentina é séria, mas não é
inédita. Lá, o general Jorge Rafael Videla, ditador deposto em 1981, morreu num
banheiro da cadeia em 2013. Em 2001, o presidente civil Fernando de la Rúa
fugiu da Casa Rosada, e em duas semanas o país teve cinco presidentes.
O governo do presidente Alberto Fernández está bichado. Cumpriu-se parcialmente uma profecia de Jair Bolsonaro, impropriamente enunciada durante a campanha eleitoral de los hermanos. Fernández e Lula aproximaram-se. Javier Milei, por sua vez, aproximou-se de Bolsonaro.
Com as cartas que estão na mesa, é forte o
efeito gravitacional que levaria o Brasil a se meter na encrenca argentina. Se
Bolsonaro não deveria ter se metido na campanha de 2019, o governo de Lula não
deve se meter na disputa de 2023. À primeira vista, isso parece impossível, até
injusto. Seria como tirar o sapato sem tirar a meia.
Para diplomatas competentes, não só isso é
possível, como, em circunstâncias piores, o Itamaraty já fez a mágica.
Em 1982, os presidentes Leopoldo Galtieri e
João Baptista Figueiredo eram bons amigos. Militares brasileiros sequestravam
exilados argentinos no Brasil, e militares argentinos sequestravam brasileiros
em Buenos Aires. O general Galtieri (um bebum) teve sua ideia: invadir as Ilhas
Falklands, terras perdidas no meio do oceano, governadas pelos ingleses.
A primeira parte foi fácil, e ele tomou as
Malvinas. Restava a segunda: o que faria a Inglaterra, governada pela
primeira-ministra Margaret Thatcher? No dia 23 de abril de 1982, o embaixador
do Brasil em Londres, Roberto Campos, informava:
— Especula-se que as propostas britânicas
estariam divididas em três fases: retirada argentina, período de transição,
onde o Reino Unido faria algumas concessões no sentido de uma administração
partilhada, e uma negociação da situação final das ilhas, inclusive da questão
da soberania.
No dia seguinte, foi além:
— Vários observadores vêm insistindo em que
seria muito pouco provável que o Reino Unido inicie operações militares contra
a Argentina enquanto estão em curso negociações.
Ilusão do doutor. Thatcher desceu a frota,
retomou as ilhas, e Galtieri, humilhado, foi mandado para casa. No Itamaraty
estava o chanceler Ramiro Guerreiro, de sapatos e meias. Ele sabia que a
aventura militar acabaria em desastre. Tratava-se de dissociar-se da maluquice,
sem colocar o Brasil na condição de aliado dos ingleses numa questão sensível
para todos os argentinos.
Guerreiro conteve os ímpetos de Figueiredo
e dos militares brasileiros aliados da ditadura argentina, com suas dezenas de
milhares de mortos. O chanceler Guerreiro era um diplomata discreto. Seu colega
Araújo Castro dizia que ele era a única pessoa capaz de dormir durante o
próprio discurso.
Por calado, Guerreiro não deixou registro
público da mágica. Seus detalhes estão nos arquivos do Itamaraty. Passados 41
anos, eles estão disponíveis para quem sente o impulso de se meter na encrenca
argentina e na alma aventureira de Javier Milei.
Pois é.
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