segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Fernando Gabeira - Como a polícia pode matar a democracia

O Globo

O perigo de uma virada política a partir do medo dos eleitores é uma possibilidade

Desde quando voltei do exílio, observei a violência urbana no Brasil. Comissões de direitos humanos, experiência in loco, reportagens — tudo isso me dá um sabor de fracasso na política de segurança pública na redemocratização.

Essa chacina no Guarujá, que já levou 16 vidas, é tratada como um fato histórico em São Paulo. Aqui no Rio, quando ainda contavam os mortos por lá, dez pessoas tombavam na Vila Cruzeiro. Ações policiais com grande número de mortos tornaram-se um fato cotidiano, foram naturalizadas.

Não há dúvida de que políticos conservadores no poder estimulam essa política, cuja eficácia se mede pela quantidade de corpos estendidos no chão. Infelizmente, a polícia baiana, comandada por um governo de esquerda, mata com a mesma intensidade de todas as outras.

Por que preferimos a força bruta à inteligência e às informações de qualidade como base das ações policiais? Por que somos incapazes de prever certos acontecimentos que estão diante de nós? Fiz duas reportagens — uma em Angra dos Reis, outra em Paraty — para mostrar como o tráfico armado se desloca para cidades turísticas. O que acontece no Guarujá é apenas a confirmação dessa tese. Não há estratégia de segurança diante de mudanças sociais tão evidentes.

A escolha da força bruta e também da tortura para obter informações é mais barata. Temos dificuldade em admitir que segurança custa caro, que é preciso investir em equipamento, formação. E, quando esse equipamento surge, como as câmeras nos uniformes policiais, Cláudio Castro e Tarcísio de Freitas boicotam. Por quê?

Essa é outra importante questão. O fracasso de uma política democrática e civilizada abre caminho para soluções violentas. Elas agradam a uma parte do povo. Vale a pena dar uma olhada em El SalvadorNayib Bukele conquistou 80% de popularidade com uma política de detenção em massa, assassinatos e torturas. O índice de presos em El Salvador é o maior do mundo. Bukele se declara um ditador cool, descolado, e tem mais de 6 milhões de seguidores mundiais no TikTok. Sua influência se estende a Honduras, onde uma presidente de esquerda, Xiomara Castro, pretende seguir o mesmo caminho ditatorial.

O Brasil não é El Salvador. O problema é o perigo de caminhar para lá. A violência não se limita aos estados do Rio e de São Paulo. Cresceu no Norte e Nordeste de forma assustadora. Cobri uma mortandade num presídio de Manaus produzida por facções locais. Visitei bairros pobres em Fortaleza dominados também por um grupo nativo, com os mesmos métodos das organizações do Sudeste. A existência de uma poderosa rota de drogas abriu lugar para os que vieram e os que surgiram por lá. Em Fortaleza, a organização criminosa parece ter nascido de uma torcida de futebol.

Todos esses fatos são conhecidos e nos chegam a conta-gotas. Mas, se olharmos o conjunto, veremos que o perigo de uma virada política a partir do medo dos eleitores é uma possibilidade. É difícil que a mortandade cotidiana comova grande parte dos políticos brasileiros. Mas, se perceberem que a própria democracia está em perigo, talvez se movam.

No momento, o banho de sangue ganha novos cenários, e há um silêncio pesado. Não se discute, não se propõe, exceto na bancada da bala, cujo nome expressa uma concepção de segurança pública em estilo salvadorenho. Em El Salvador, nenhum problema de fundo foi resolvido, como educação e pobreza; no entanto Bukele tem forte apoio nos bairros periféricos.

É fundamental compreender como morrem as democracias. O fracasso em políticas de segurança pública é uma contribuição de alguns países pobres para a teoria. Não sei se apenas o fracasso, mas também a indiferença das elites políticas.

 

4 comentários:

  1. Se os políticos acreditassem na lei do carma,como eu,agiriam diferente.

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  2. A questão central não se resolve, pois Lula é amigo das nações traficantes e Bolsonaro é o braço político das milícias.

    Desde 2010 sabemos que a questão central é política e diplomática. Tem que pressionar Bolívia,Paraguai, Venezuela, Peru, Cuba, Nicarágua e ajudar a Colômbia. Sem isso enxugamos gelo, enquanto enterramos nossos mortos.

    Perceba que mesmo Gabeira fugiu dela.

    MAM

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  3. ■Penso que Gabeira cometeu um deslize neste artigo. Falo ser um deslize porque não vejo Gabeira praticando o preconceito que vi aqui::
    ▪Neste artigo, Gabeira associou Conservadorismo Politico com defesa do uso da violência. Eu não vejo Conservadores Ideológicos propondo o uso da violência pelo Estado ; pelo contrário, vejo os conservadores propondo pactos políticos de combate à violêncua, e as soluções por eles pensadas estão filosoficamente impregnadas do pensamento conservador, de combater com firmeza qualquer tipo de delinquência, mas não valorizando o uso indiscriminado da força. Eu vejo essa prática de conservadores, quando feita de forma adequada, como uma virtude e que devia ser positivamente considerada por todos nós, para não deixarmos que a violência se generalize e vire uma atitude-argumento absurda, até com risco de substituir a política, como vemos em Cuba, em El Salvador, na Rússia, na China e nas Filipinas.

    Em alguns lugares podemos ver governantes ou outros que são percebidos como conservadores defenderem uso indiscriminado da força, mas quando o fazem não é por serem conservadores e sim por serem civilizatoriamente limitados e/ou equivocados e por isso não priorizam o uso de inteligência e treinamento mais adequado para a abordagem e a ação.

    Tanto não é o uso da violência uma marca de conservadores, que Gabeira também cita neste artigo que o governo da Bahia, que é do PT, também usa violência. E usa muita violência!

    E Gabeira cita mais:: cita a presidenta de Honduras Xiomara Castro, que é vista como de esquerda, e observa também que o uso da violência é crescente nos Estados do Nordeste, que são governados mais por politicos ditos progressistas ou associados e eleitos com apoio dos ditos progressistas.

    Quando olhamos pelo mundo países governados por conservadores ideológicos ---identificando o governante como conservador a partir de sua consistente e coerente formação política e não a partir de atitudes e ideias que por ranço, por má-intenção ou por ódio escancarado adversários de conservadores resolveram perspegar em atores políticos e os ligarem àquela matriz de ideias para estigmatizá-la---
    vemos que os conservadores coerentes não defendem o uso indiscriminado da violência e agem para combater estes abusos nos lugares que governam. E na outra chave ideológica, pelo contrário, não é só na Honduras de Xiomara Castro, na Bahia do PT e em outros Estados do Nordeste onde o governante ganhou com o apoio do PT que a violência está sendo praticada, mas em bem mais lugares em que ser "de esquerda" é uma escolha consciente e corroborada por formação política consistente dos governates:: em Cuba, na Venezuela...

    E nestes lugares onde os governantes são legitimamente de esquerda, pela formação ideológica consistente que os faz conscientes das ideias e práticas que defendem e por isto eles são imediatamente vistos como progressistas, o pau come e a mãe não vê ; e se vê ela apanha junto, é presa junto e muitas vezes ela nunca mais é vista, sumindo junto com o seu filho.

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  4. ■Por esse tipo de reflexão é que eu gostaria que os conceitos de Conservador, Progressista, Democrata, etc, fossem usados com maior cuidado, para evitar que estes conceitos e definições sejam apropriados de forma abusiva e sirvam para estigmatização, desqualificação e outros abusos.

    Um abuso que eu vejo ser cometido, muito provavelmente por aqueles que o fazem terem internalizado o conceito como acusação e estarem repetindo a definição sacana e distorcida difundida por algum ideólogo picareta e que sempre é difundida para desqualificação, é dizer que há uma superioridade moral em quem é de esquerda em relação a quem é de direita. Os fatos nada corroboram essa percepção e, muito pelo contrário, é só comparar uma lista com quem é realmente de direita e quem é realmente de esquerda e ver suas práticas que essa percepção facilmente será negada pelos fatos. A não ser que se cometa a sacanagem de sair listando como de direita quem, agindo por intuição e com o emprego de alguns elementos do ideário de direita, seja percebido como consciente do que isso significa, sem que o seja.

    Ser de esquerda e ser de direita exige a formação necessária que torne o ator conhecedor e por isso ideologicamente consciente dos seus atos, e muitos, a maioria dos que vejo serem identificados aqui no Brasil como de direita ou de esquerda, não o são propriamente. Lula e Bolsonaro, por exemplo, os dois são populistas, os fatos corroboram isso, porém, só forçando ou querendo podemos identificá-los como adeptos de uma ideologia.

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