O Globo
Terreiros não reivindicam o lugar de
médicos, equipes de saúde, tampouco da ciência
Não é raro buscar em “Provérbios/Òwe”,
livreto de Mãe Stella de Oxóssi (1925-2018) do tamanho de uma cartela de
comprimidos, alívio para dores da alma ou mesmo do corpo, decorrentes do
invisível. Da abertura aleatória da minúscula publicação brotou o ensinamento
da vez, de origem africana:
— Não há sábio que conheça o número dos
grãos de areia.
Numa página, o dito original em ioruba e
português; na outra, a interpretação da ialorixá, que, por mais de quatro
décadas, liderou o Ilê Axé Opô Afonjá (BA), um dos mais tradicionais terreiros
de candomblé do Brasil:
— Mesmo o maior dos sábios tem sempre algo
a aprender.
Sob a inspiração de iyá, emerge a reflexão sobre o burburinho em redes sociais e impressos sobre o item 46 das diretrizes aprovadas na 17ª Conferência Nacional de Saúde, em julho passado. A onda de desinformação por ignorância ou má-fé fez o Ministério da Saúde vir a público. Em nota, a pasta explicou:
— Dentre as discussões da conferência, o
reconhecimento das manifestações da cultura popular dos povos tradicionais de
matriz africana e seus espaços como lugares de cura foi tema de avaliação. A
resolução destaca o papel das casas dessas religiões como portas de entrada
para a saúde pública, bem como no combate ao racismo e à intolerância religiosa.
Cada uma das 59 orientações da resolução,
informou o ministério, são (apenas) contribuições à formulação da política
nacional de saúde. Não são impositivas, não configuram norma, não existem sem
adoção formal pelas esferas de governo (União, estados e municípios). Não há
prazo para virarem políticas públicas, tampouco certeza de que se tornarão.
Esta foi a primeira vez que religiões de
matriz africana foram atendidas numa Conferência de Saúde, informa Denise
Oliveira, sanitarista, pesquisadora da Fiocruz em
segurança alimentar e candomblé no Distrito Federal. A reivindicação de
terreiros e organizações do movimento negro era antiga, diante do preconceito
que representantes de cultos afro-brasileiros enfrentam já na entrada das
unidades de saúde. Brasil afora, pais e mães de santo são impedidos de assistir
filhas e filhos em hospitais. Basta se aproximarem vestidos de brancos, com
ojás e fios de contas. Foi o caso da ialorixá Paula de Odé, impedida de entrar
no Hospital Carlos Chagas, no Rio de Janeiro, para um ritual. Jerônimo Rufino,
seu filho de santo vítima de um AVC, morreu dias depois.
No Estado laico, padres católicos e
pastores evangélicos não têm dificuldade de acessar os fiéis, mesmo não
existindo qualquer resolução autorizando. Para uns, livre circulação; para
outros, nem com (proposta de) autorização. Parece exagero burocrático ou rigor
científico, mas é racismo religioso. A repulsa aos cultos afro-ameríndios é tão
antiga quanto o Brasil. Ainda assim, comunidades de terreiros resistem. E
sobrevivem.
Não é preciso ir à Nigéria para saber da
contribuição das religiões tradicionais às melhores práticas de saúde física e
mental, avesso do curandeirismo. A Agência de Notícias das Favelas, em meados
de 2020, informava que a ialorixá Jaciara Ribeiro, do terreiro Abassá de Ogum,
em Itapuã (Salvador, BA), intensificou arrecadação e distribuição de cestas
básicas, quentinhas, além de máscaras e itens de higiene na comunidade, durante
a pandemia da Covid-19. Diariamente, ela se comunicava com os filhos de santo
por aplicativo de mensagens:
— Tenho feito esse acolhimento contra a
sensação de medo, de pânico. Não sou psicóloga nem psiquiatra, mas o orixá dá
caminho. Tenho feito banhos que acalmam.
Em São João de Meriti, na Baixada
Fluminense, Mãe Meninazinha de Oxum, hoje com 86 anos, aplicou como terapia
ocupacional o que aprendeu em cursos de artesanato do terreiro, fundado em
1968. No período crítico da pandemia, sob o isolamento imposto por autoridades
sanitárias, começou a pintar e decorar garrafas vazias. Produziu mais de 200.
Boa parte foi vendida, e o dinheiro revertido em cestas básicas para uma
centena de famílias da região.
Casas de umbanda e candomblé de todo o país
suspenderam atividades durante a pandemia; só as retomaram com a cobertura
vacinal concluída. Terreiros são espaços de resgate e valorização de tradições
culturais e religiosas, de reverência à ancestralidade, de formação de laços
familiares não biológicos, de acolhimento, assistência, respeito, tolerância.
Como indicou a resolução do CNS, são ambientes de cura do desequilíbrio mental,
psíquico, social, alimentar.
Não reivindicam o lugar de médicos, equipes
de saúde, tampouco da ciência. Como escreveu o babalorixá Sidnei Barreto
Nogueira, também doutor em semiótica:
— Nenhuma tradição de terreiro advoga pela
substituição da ciência, pela sua exclusão ou pela sua invalidação.
Ossaim é o orixá da cura pelas folhas. E
não foram poucos os vegetais manipulados por culturas tradicionais cujos
princípios ativos se tornaram medicamentos. Ogum transforma metais em
ferramentas, da enxada à espada. É tecnologia pura.
Obaluê é o senhor da terra, do sol do
meio-dia, da cura. Em seu mês, agosto, há recomendação de silêncio, humildade,
recolhimento. Calar faz bem. Do livrinho de Mãe Stella, salta outro provérbio,
este brasileiro:
— Quem fala só de si, só a si não aborrece.
Iyá traduziu assim:
— O próprio umbigo não pode ser o centro do
mundo.
Há um mundo desconhecido lá fora. O remédio
é respeitar.
É necessário respeito para com os valores culturais e religiosos dos adeptos de qualquer crença.
ResponderExcluirE, mesmo em ambiente hospitalar, desde que não interfiram de nenhuma forma nas prescrições dos protocolos científicos para tratamento de doenças, o acesso a atendimento religioso aos que desejam deve ser facilitado.
Aprendi hoje mais um pouco sobre o caminho da cura entre humanos: respeitar e aprender com as comunidades ao nosso redor que o meu umbigo é tão importante como o seu. Silêncio respeito e aprendizagem para um mundo melhor.
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