O Globo
Até 1830, maridos tinham o direito legal de
matar esposas flagradas em adultério
Durou o tempo de um Brasil inteiro até o
Supremo Tribunal Federal sepultar a barbaridade jurídica da legítima defesa da
honra, que, décadas a fio, sacramentou a impunidade para feminicidas e
agressores de mulheres. Somente no primeiro dia de agosto deste ano, por
unanimidade, dez ministros — o 11º, Cristiano Zanin, só tomaria posse ontem —
entenderam que a argumentação retórica contraria os princípios constitucionais
da dignidade humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. Assim, a
estratégia não poderá mais ser utilizada por defesa, acusação, autoridade
policial e juízo, tampouco em julgamentos do Tribunal do Júri.
A legítima defesa da honra, como tantas
violações contra indivíduos e grupos sociais no Brasil, é herança do período
colonial, quando a honra masculina era tida como bem jurídico. Até 1830, ano da
promulgação do Código Criminal do Império, maridos tinham o direito legal de
matar esposas flagradas em adultério. As Ordenações Filipinas — compilação
jurídica vigente em Portugal e também no Brasil até ali — caducaram, mas a
estrutura de poder que subjuga mulheres não.
— O crime de feminicídio é de extrema e irreversível violência, pois atenta radicalmente contra todos os direitos e garantias estabelecidos nas leis internacionais e nacionais. Trata-se de um ato de ódio, que distorce todo o sentido de humanidade. Consolida no tempo a visão hegemônica masculina sobre as mulheres como propriedade, objeto de transgressão e símbolo de fraqueza. A legítima defesa é uma tese absurda e machista que valida a brutalidade — diz Fabiana Dal’Mas Paes, promotora do MP-SP e presidente da Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica (ABMCJ-SP), que atuou no STF pela inconstitucionalidade reivindicada na ação movida pelo PDT.
Embora secular, a legítima defesa da honra
tomou a opinião pública brasileira em 1979, no julgamento de Doca Street, pelo
assassinato, três anos antes, de Ângela Diniz, sua então companheira, no
balneário de Armação dos Búzios (RJ). O criminalista Evandro Lins e Silva,
advogado de defesa, apresentou o cliente como “um homem humilhado às últimas
consequências”, vítima de uma mulher que “queria a vida livre, libertina,
depravada”.
O júri era formado por duas mulheres e
cinco homens, todos moradores de Cabo Frio (RJ), cidade da Região dos Lagos
onde se deu o julgamento. A estratégia de culpar a vítima prevaleceu, e o
feminicida foi condenado a somente dois anos de detenção, com direito a
suspensão da pena. Doca Street só seria preso em 1981, condenado a 15 anos no
segundo julgamento, fruto da pressão do movimento feminista, que ganhava força
à época.
A Carta Magna que estabeleceu a igualdade
entre homens e mulheres é de 1988; a Lei Maria da Penha, contra violência
doméstica, foi promulgada em 2006; a Lei do Feminicídio, em 2015. A legítima
defesa da honra resistiu às três. Sem previsão legal, flagrantemente
inconstitucional, não só livrou da condenação, mas emprestou aura heroica a
assassinos de mulheres.
A decisão do STF varre a legítima defesa da
honra, mas não põe fim à violência de gênero. A última edição do Anuário
Brasileiro de Segurança Pública contabilizou aumento em todos os crimes contra
mulheres: feminicídio e tentativa, agressão por violência doméstica, ameaça,
violência psicológica. O ano passado bateu recorde de registro de estupros,
74.930 casos. No STF, colegiado com 11 cadeiras, somente duas mulheres têm
assento, proporção menor que no júri de Cabo Frio. A ministra Rosa Weber,
em seu voto, afirmou que, numa sociedade democrática, “não há espaço para a
restauração dos costumes medievais e desumanos do passado, pelos quais tantas
mulheres foram vítimas da violência e do abuso, em defesa da ideologia
patriarcal fundada no pressuposto da superioridade”.
Atual presidente do STF, ela deixará a
Corte em outubro, por aposentadoria. Para seu lugar, o presidente da República
ainda hesita em indicar outra mulher. Organizações da sociedade civil e parte
do mundo jurídico se mobilizam por juristas negras, caso de Adriana Cruz e Karen
Luíse (juízas), Lívia Sant’Anna Vaz (promotora), Lívia Casseres (defensora
pública), Soraia Mendes e Vera Lucia Araújo (advogadas); e brancas, entre elas,
Regina Helena Costa (ministra do STJ), Simone Schreiber (desembargadora), Dora
Cavalcanti, Carol Proner e Flávia Rahal (advogadas).
A ministra Cármen Lúcia,
que corre o risco de ser a única mulher no STF, a depender da escolha de Lula,
disse que a legítima defesa da honra é questão, mais que jurídica, humanitária:
— A sociedade ainda hoje é machista,
sexista, misógina e mata mulheres apenas porque elas querem ser donas de suas
vidas.
Enquanto o STF concluía o julgamento da
ADPF 779, parte do país se assombrava com o caso da jovem mineira que fora
abandonada desacordada na calçada por um motorista de aplicativo — sem
treinamento nem noção sobre dignidade humana ou serviço público — e acabou
levada por um criminoso e estuprada num terreno abandonado. No Brasil,
mulheres, como bem definiu a irmã da vítima, ainda são descartadas como sacos
de lixo.
Essas análises identitárias são divertidas. Esquecem que foi uma mulher que defendia que as mulheres princesas vestem rosa (Barbie mostra isso). A articulista deve ter uma excelente impressão dos governos Rosinha e Benedita.
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