O Globo
Bíblia numa mão, PowerPoint na outra e todo
o moralismo do planeta sobre os ombros, Deltan foi completamente irresponsável
Gente como Nélson Rodrigues ou Dias Gomes
faz falta, sabe? De formas muito distintas, eles tinham essa habilidade de
olhar para aquilo que há de ridículo na vida brasileira e ressaltar. Sublinhar.
Nos expor. Esse personagem que não vai embora da vida pública, o hacker de
Araraquara, talvez fosse apresentado de forma muito diferente por um ou por
outro. Mas ambos mostrariam o que deveria estar evidente, porém não está. Tem
algo de pequeno, de tacanho, em essência de ridículo neste arco dos últimos dez
anos da política brasileira.
Não temos mais um Nélson ou um Dias porque não seria possível com os humores correntes. Hoje tudo é muito sério, tudo é muito grave, tudo precisa ser denunciado. Ninguém é ridículo. As pessoas podem ser violentas, criminosas, intolerantes, racistas, misóginas, até fascistas. Mas nunca são ridículas. O ridículo nunca é perigoso. Quando o menino grita que o rei está nu, o muito grave se mostra pelo que realmente é. Nada grave, pois ridículo.
Nada envolvendo o hacker de Araraquara tem
como ser grave. Porque ele não é um hacker. Ele é um estelionatário que
aprendeu uns truques na internet. Walter Delgatti tentou ganhar acesso às
mensagens de meia República. Conseguiu fazer isso num só caso, do então
procurador Deltan
Dallagnol. Conseguiu porque o procurador responsável pelo caso mais
delicado da História da Nova República, um caso que chegou a ponto de prender
um ex-presidente, foi irresponsável. Jamais ocorreu a Deltan que ele deveria se
preocupar com segurança digital. Que deveria colocar uma reles senha em suas
comunicações. Que era a pessoa considerada, pelo Estado brasileiro, responsável
por cuidar de informações que precisavam ser mantidas em sigilo. Um hacker de
meia-tigela foi lá e pegou tudo precisando, apenas, saber seu número de
telefone. (O truque dava para aprender até em vídeo no YouTube na
época. Não funciona mais.)
O fato de, a partir daí, ter-se mostrado
que havia na Lava-Jato conluio entre juiz e Ministério Público só acentua o
ridículo. Deltan, todo sisudo, Bíblia numa mão, PowerPoint na outra e todo o
moralismo do planeta sobre os ombros, foi completamente irresponsável em sua
atuação. Ter sido exposto por um hacker de araque sublinha o ridículo. Afinal,
ilumina a frouxidão dos métodos.
Delgatti não sumiu aí, pois foi
ressuscitado na estridência do bolsonarismo. Quando a deputada Carla
Zambelli começou a circular com ele, parecia dizer a todos que
o hacker de Araraquara seria capaz de demonstrar que a urna eletrônica era
frágil. Até ali, poderia ser apenas discurso para o povo do WhatsApp. Vai que
cola. Mas, se a Polícia
Federal estiver certa, e Zambelli tiver pedido não só que ele
quebrasse a segurança da urna, como atacasse ministros do Supremo violando a
segurança digital de seus servidores, aí a coisa muda de figura.
Aí quer dizer que Zambelli e outros, dentro
do bolsonarismo, olharam para Delgatti e realmente o confundiram com um hacker.
Não entenderam nada. E, assim, o ridículo se impõe. O hacker de Araraquara deve
ter cobrado um bom dinheiro para fazer o que sabia perfeitamente não ser capaz
de entregar. Porque, diferentemente do Telegram do procurador, a urna
eletrônica é séria, e emitir mandado de busca ou de prisão, como queria a
deputada, não é coisa para amadores.
Zambelli, como Deltan, não é séria. Como
Bolsonaro não é sério. O vigarista do interior passou a perna neles todos, um
por um. Isso diz tanto sobre um Brasil que anda se achando sério demais.
''Hacker de araque de Araraquara'',agora eu sei de quem é a expressão,ontem foi usada por outro comentarista no UOL,rs.
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