Por Caio Sartori / Valor Econômico
Autora do clássico ‘A invenção do
trabalhismo’, que completa 35 anos, Angela de Castro Gomes defende ainda
punição severa a militares golpistas
Rio de Janeiro - Autora de referência na
história política brasileira, Angela de Castro Gomes vê um Lula mais cuidadoso
politicamente no atual mandato - fruto do amplo arco de apoios que recebeu na
eleição do ano passado e que agora quer, com legitimidade, participar do
governo. “Apesar da liderança pessoal que só Lula tem, e era mesmo o único
capaz de derrotar o bolsonarismo, ele não foi eleito só por um partido, mas por
uma frente. Isso é ótimo no momento da eleição, mas difícil como governo”,
avalia a historiadora. Ter sucesso na atual gestão, diz, passa por conseguir
administrar essa frente e conciliar os variados interesses em disputa.
Há 35 anos, no mesmo 1988 em que a Constituição foi promulgada, Castro Gomes publicou “A invenção do trabalhismo”, livro considerado o principal guia sobre a cultura política iniciada por Getúlio Vargas no Estado Novo, herdada por João Goulart depois do suicídio do caudilho e resgatada por Leonel Brizola pós-Anistia de 1979. Resultado da tese da historiadora na primeira turma de doutorado em Ciência Política do antigo Iuperj, atual Iesp-Uerj, o trabalho teve orientação de Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019), outro estudioso fundamental da República brasileira.
Três décadas e meia depois, a pesquisadora
de 75 anos sentencia que o trabalhismo, como era entendido naquele momento, não
existe mais - tampouco o PDT, sigla originária daquela tradição, que teria
morrido junto com Brizola em 2004. E foi Lula, afirma, quem herdou essa
cultura, adaptada a um mundo do trabalho repleto de transformações e com o
diferencial de ser ele próprio um trabalhador, não apenas um defensor dos
operários.
“Lula
passa a ser esse representante do trabalhismo, se pensarmos o Lula nesse papel
de quem tenta representar a luta dos trabalhadores por direitos, inclusive os
direitos de participar da política ocupando cargos”, observa. “No PTB [o
varguista, pré-1964], a bandeira era para os trabalhadores votarem, mas eles
não participavam da política. Isso passa a ser possível com o PT. E claro que o
Lula é o maior exemplo: um trabalhador que virou presidente da República três
vezes.”
Hoje, a historiadora não hesita: “Lula é
uma liderança maior até que Getúlio, até porque Getúlio foi um ditador.”
Castro Gomes também não deixa de
classificar o PDT de Brizola, substituto do velho PTB no contexto de
redemocratização, como uma sigla pouco compreensível nos dias de hoje. “O PDT
mantém o nome de trabalhista, mas se transforma em um partido difícil de
qualificar. O PDT, que trouxe várias novidades naquele contexto, é um partido
que poderia ter sido alguma coisa, mas não foi. O PT poderia, foi e continua
sendo”, compara. Muito disso, segundo ela, pode ter a ver com a excessiva
centralização partidária em torno de Brizola, que acabou dificultando a
formação de novas lideranças. E, claro, pela capacidade política de Lula e seu
partido, que dominaram as esquerdas a partir de 1989.
Estaria Lula adaptado ao novo mundo do
trabalho, onde a informalidade ocupa espaço significativo? A historiadora
acredita que o presidente, forjado na luta sindical, vem tentando. E afirma que
os empregos sem carteira assinada não devem ser privados de direitos e
garantias.
Um problema da nossa democracia é como as
Forças Armadas se blindam e protegem o Alto Comando”
“O fato de ter home office, trabalho de
aplicativos, nada disso significa que os trabalhadores não precisam ter
direitos como horário de trabalho, aposentadoria, cobertura de saúde. Eles
precisam ser protegidos pelos que os empregam - que, de forma diferente, ainda
são patrões. Não são donos de fábrica, não tem cartãozinho de ponto, mas são
patrões”, diz.
Ao olhar para o início do século XX, antes
da CLT, a pesquisadora minimiza a atual resistência das empresas e de setores
da sociedade que veem na regulamentação desses novos empregos um risco de
falência do modelo. “Naquela época também se dizia que, se tivesse jornada de
oito horas de trabalho, as fábricas iriam falir. Não faliram”, aponta.
“Costumamos achar que no início do século passado as pessoas sabiam como era
ter direitos. Não sabiam. Os trabalhadores lutaram muito. Teve até delegado de
polícia arbitrando acordo entre patrão e operário de fábrica. Os direitos foram
adquiridos a partir dessas experiências de luta.”
Profunda conhecedora dos períodos da
República em que os militares se envolveram na política, Castro Gomes depara-se
de novo com o que considera a dificuldade do país em punir de forma exemplar os
oficiais de alta patente envolvidos em ataques à democracia. O momento pós-8 de
janeiro deveria servir para enquadrar as Forças Armadas, promover reformas na
caserna e penalizar aqueles diretamente envolvidos nas conspirações
antidemocráticas, elenca ela, sem nutrir grandes esperanças.
“Um problema histórico da nossa democracia
é justamente como as Forças se blindam com um corporativismo extremamente forte
e protegem membros fundamentais do Alto Comando, oficiais de altíssima patente.
De qualquer forma, eles vão pagar um preço político, já estão pagando - seja
pela corrupção ou pela incompetência que demonstraram nos últimos anos”, diz.
“Mas não sei se pagam o preço que eu gostaria que pagassem, um preço alto. A
meu ver, seria bom se dessa vez fossem efetivamente punidos, como foram em
outros países como Argentina e Espanha quando se envolveram em golpismo: foram
presos, perderam suas patentes. Afinal, são crimes contra a Nação.”
A Nova República, analisa Angela de Castro Gomes, tem uma trajetória de significativos avanços políticos e sociais, mesmo que com recuos. A história, explica, não segue uma linha reta rumo ao progresso: “Uma coisa clara na história é que momentos de avanços de direito e de cidadania geram uma reação muito forte de forças de regresso.”
Pois é.
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