terça-feira, 29 de agosto de 2023

Míriam Leitão - As palavras fora do lugar

O Globo

O Brasil ainda vive o resquício de quatro anos em que a ditadura foi venerada. A Argentina começa a ver o mesmo pesadelo

O candidato da extrema direita na Argentina, Javier Milei, tem sido definido como “libertário”. Uma chapa que defende ideias da última ditadura argentina é qualquer coisa menos libertária. Na política não há conexão entre a palavra e o seu sentido. O Partido Liberal conspirou contra a liberdade. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, é do Republicanos e quer homenagear um expoente da repressão política do governo militar. Por definição, uma ditadura não é uma República. As pautas mais reacionárias no Congresso têm o apoio do Progressistas. A Câmara de Porto Alegre criou o “Dia do Patriota” para ser comemorado em 8 de janeiro, dia em que vândalos atacaram as sedes dos poderes, e destruíram o patrimônio da Pátria. O ministro Luiz Fux mandou suspender esse despropósito.

As palavras estão fora do lugar e ficam ainda mais nesses momentos em que o país vive espasmos retardados do projeto autoritário que foi derrotado na eleição e no 8 de janeiro. A intenção do governador de São Paulo de homenagear Erasmo Dias dando o nome dele a um viaduto é um desses espasmos. Dias foi o secretário de segurança que invadiu com tropas a PUC de São Paulo, em 1977, foi parte do aparelho de repressão da ditadura e fez declarações em defesa da tortura. Por ordem da ministra Cármen Lúcia, o governador de São Paulo terá que explicar ao STF a razão da homenagem. É parte da Ação Direta de Inconstitucionalidade apresentada por partidos e entidades da sociedade civil.

É tudo tão fora da hora que o deputado autor da homenagem não foi reeleito. Frederico D’Ávila, do PL, defensor desse agente da ditadura, nem mandato tem mais. Sua proposta foi aprovada agora na Assembleia Legislativa e o governador se apressou a propor a homenagem.

O Brasil passou quatro anos tolerando a apologia de torturadores. Quem faz apologia de crime, criminoso é. Portanto é bom que ele e o presidente da Assembleia, André do Prado, se expliquem e que a Justiça seja rigorosa com quem faz o elogio de crimes tipificados em lei. Governador e deputado precisam responder se concordam com os atos praticados por Erasmo Dias. No governo Bolsonaro, o Brasil aceitou a defesa insistente de Carlos Alberto Brilhante Ustra. Na campanha de 2018, perguntei ao então candidato a vice-presidente, Hamilton Mourão, porque ele definia o coronel Ustra como herói, se durante o período em que comandou o DOI-Codi dezenas de prisioneiros foram mortos sob tortura. Mourão respondeu: “heróis matam”. Ustra não foi herói, foi torturador, criminoso. Depois de quatro anos de ofensa aos valores democráticos, à Constituição do país e às convenções internacionais de direitos humanos, ficou evidente que a tolerância com o intolerável não é o caminho.

A Câmara dos Vereadores de Porto Alegre teve que recuar da sua decisão, mas é importante que ela explique porque chegou a instituir o 8 de janeiro como o “Dia do Patriota”. Nesse dia da infâmia, o país, suas instituições democráticas foram atacadas. Quem as atacou está respondendo pelos seus crimes. Quem acha que eles foram patriotas deve ser considerado cúmplice do crime.

A Argentina começa a ver o mesmo pesadelo que vivemos aqui. De acordo com a correspondente Janaína Figueiredo, em coluna publicada neste jornal no último dia 22, a candidata a vice na chapa de Javier Milei, Victoria Villarruel, define como “mães de terroristas”, as “mães e avós da Praça de Maio” que procuram há décadas pelos corpos dos seus filhos desaparecidos e pelos seus netos roubados. Milei tem defendido ideias tão fora do lugar, como a de fechar o Banco Central e ter um mercado de venda de órgãos humanos, que até a imprensa tem dificuldade de defini-lo. Mas ele é o que é: um candidato da extrema direita, a mesma de Trump e Bolsonaro, com os mesmos maus propósitos em relação às instituições. A vice de Milei quer fazer uma revisão da década de 70, num discurso muito parecido com o que vimos aqui, em que o golpe de 1964 e a ditadura que se seguiu foram novamente chamados de “revolução”.

O primeiro passo para corrigir qualquer rota é definir corretamente atos e palavras. Quem quer homenagear Erasmo Dias acha certo invadir uma universidade com tropas, prender professores e funcionários. Concorda com a tortura de presos políticos e prefere a ditadura à democracia. O governador de São Paulo precisará dizer ao Supremo Tribunal Federal se é isso mesmo que quis dizer com a homenagem.

 

2 comentários:

  1. ■Se algo é intolerável, então NÃO SE TOLERA.
    ▪Óbivio, não é? Mas parece que não tão óbivio assim!

    Há muita coisa intolerável aqui no Brasil e no mundo ; e TUDO que é intolerável tem que ser combatido!

    A Miriam Leitão, neste artigo, fez o recorte de duas, dentre muitas coisas intoleráveis:: a CORRUPÇÃO e o GOLPISMO dentro das nossas forças militares.

    CORRUPÇÃO
    Com que força e com que moral nós vamos combater a intolerável corrupção dos militares se o presidente da república também for um corrupto*?

    GOLPISMO
    Com que força e com que moral nós vamos combater o intolerável golpismo de militares aqui no Brasil se o próprio Presidente da República for um apoiador de alinhados seus que em outros países tomaram o poder usando estatégias golpistas? E se as Forças Políticas que o presidente da república lidera forem elas também apoiadoras de ditadores que usam estratégias de golpe, com que moral nós vamos combater aqui o golpismo de militares?

    O artigo de Miriam Leitão é importante, mas nós não podemos ser rasos se quisermos combater no Brasil o que é intolerável, mas por outro lado aceitarmos dar força e moral para quem é fã das mesmas intolerâncias, sem denunciá-las permanentemente. Ainda mais quando quem pratica e apoia intolerãncias estiver no poder.

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  2. Lembro de Mourão dizendo a mesma coisa no ''Canal Livre''.

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