Correio Braziliense
Há uma articulação do Sul e do Sudeste contra o
Norte e o Nordeste na reforma tributária, por causa da mudança da arrecadação
de tributos da origem para o destino das mercadorias
O brasileiro é uma invenção dos mineiros.
Seu mito fundador é a Inconfidência, em 1789, ou seja, vem de antes da
Independência, que só viria a ocorrer em 1822, cujos protagonistas se dividiram
em dois partidos: o dos brasileiros e o dos portugueses. O Partido dos
Brasileiros já nasceu dividido entre democratas, liderado por Gonçalves Ledo,
que defendia um regime parlamentarista, e aristocratas, tendo à frente José
Bonifácio, que defendia um Executivo forte, com medo da fragmentação
territorial.
O risco de fragmentação, como aconteceu em toda a América Latina, era real. Viria a se expressar com muita força, por exemplo, na Confederação do Equador, em 1824, tendo à frente Pernambuco. A república seria formada também pelas províncias de Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe e Alagoas, mas nenhuma delas aderiu ao movimento separatista. E, também, na Revolução Farroupilha (1835-1845), com a formação da República Rio-Grandense e da República Juliana. No primeiro caso, os líderes foram executados, entre os quais Frei Caneca, arcabuzado; no segundo, os que negociaram a paz foram anistiados e incorporados ao Exército, com suas patentes.
Com a dura repressão das revoltas, entre as
quais a Balaiada (MA) e a Cabanagem (PA), manteve-se a integridade territorial
do país e a centralização do poder do imperador Pedro II, para o qual foram
fundamentais o Senado, com sua política de conciliação, e a magistratura
togada, nomeada pelo Imperador. O Exército e a Marinha foram constituídos nesse
processo. A construção da identidade do povo brasileiro, porém, foi muito mais
lenta, para o qual teve papel decisivo a Revolução de 1930.
Nela, houve choque de concepções: de um
lado, os setores da elite que adotaram as teses de Oliveira Vianna, para o qual
as estruturas políticas republicanas eram artificiais e o Brasil meridional,
liderado pela elite agrária e os militares, seria a matriz da formação do novo
Estado brasileiro; de outro, setores castilhistas que tinham identidade com as
massas trabalhadoras, liderados por Alberto Pasqualini. A elite paulista, com
concepções liberais, tentou retomar o poder em 1932 e fracassou, mas cultivou
com êxito a ideia de que São Paulo é a locomotiva do país. O Rio de Janeiro
fazia o contraponto, era o “tambor do Brasil”.
Coube, mais uma vez, aos mineiros, com
Juscelino Kubitschek, o projeto de integração e combate às desigualdades
regionais, cujo âncora geopolítica foi a construção de Brasília, para onde foi
transferido o Distrito Federal. Essa ideia-força viria a ser a bandeira
legitimadora do regime militar, cujo lema era Segurança e Desenvolvimento, uma
leitura autocrática do lema positiva da bandeira nacional: Ordem e Progresso.
Mas a ideia de que somos um só povo e uma
só nação não foi monopolizada pelos militares, apesar do Pra frente, Brasil da
Copa do México, em 1970. Na letra de Para Todos, Chico Buarque sintetiza as
características do núcleo familiar que resulta do fluxo migratório, juntamente
com a miscigenação, e sedimenta união dos brasileiros: “O meu pai era paulista/
Meu avô, pernambucano/ O meu bisavô, mineiro/ Meu tataravô, baiano”. O
compositor foi um ferrenho oposicionista ao regime, tendo amargado o exílio por
causa de suas canções.
Federalismo
Entretanto, não devemos acreditar que as
nossas contradições regionais e preconceitos étnicos e sociais tenham deixado
de existir. Em São Paulo, todo nordestino é baiano; no Rio, paraíba. Todo louro
é galego ou gaúcho; no Araguaia, todo forasteiro era paulista. O governador de
Minas, Romeu Zema, com seu sincericídio, exumou sentimentos negativos em
relação ao Nordeste e despertou o ressentimento ideológico dos que venceram as
eleições nos estados do Sul e do Sudeste, mas não reelegeram o ex-presidente
Jair Bolsonaro, devido à grande votação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva
no Nordeste. Não devemos subestimar as implicações que isso terá daqui para a
frente.
Há uma articulação de governadores do Sul e
do Sudeste contra os estados do Norte e Nordeste na reforma tributária, por
causa da mudança da arrecadação dos tributos da origem para o destino das
mercadorias. Essa articulação foi bem-sucedida na Câmara, mas está
inferiorizada no Senado, no qual a federação está representada de forma
igualitária: três senadores para cada estado. Celso Furtado, entre os
intérpretes do Brasil, foi dos mais preocupados com o papel do federalismo.
Advertia que essa bandeira estava condenada a reencarnar ciclicamente, em todos
os momentos críticos, que colocassem em tela o contrato social e a reformulação
do arranjo de poder. A reforma tributária é isso.
Sua grande preocupação era arquitetar um
“federalismo regionalizado cooperativo” como instrumento para impedir a
exclusão do Nordeste e evitar a implosão da nação pela radicalização de suas
disparidades regionais. Com sinal trocado, o histórico unitarismo da esquerda
brasileira, desde os antigos PCB e PTB, dificulta esse federalismo cooperativo.
Mas há uma questão ainda mais séria. Um dos
ingredientes da globalização vem sendo o enfraquecimento da identidade nacional
e a sua fragmentação. O sujeito e a identidade na modernidade tardia e
pós-moderna foram fragmentados; nas redes sociais, isso é evidente.
Historicamente, as identidades étnicas e regionais foram abrigadas sob o teto
do Estado-nação, numa comunidade estável, com território próprio e idioma
comum, mas isso está mudando no mundo. A nação é uma construção imaginária, que
não pode ser subalternizada por sentimentos culturais e étnicos regionais. O
que o governador Zema fez foi apartar os brasileiros do Sul e do Sudeste dessa
comunidade imaginária. Seríamos dois Brasis, um moderno, produtivo e
autossuficiente; outro atrasado e improdutivo, que precisa ser carregado nas
costas. É aí que mora o perigo.
Viva os nordestinos!
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