quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Maria Hermínia Tavares* - Resistência em surdina

Folha de S. Paulo

Investidas de desmonte não faltaram nos quatro anos do pesadelo do qual o país há pouco despertou

Quem hoje discute como o país e a democracia sobreviveram a Bolsonaro aponta, com razão, o papel desempenhado pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e o TSE (Tribunal Superior Eleitoral); pelo Congresso; por estados e municípios; pela grande imprensa; e por ampla parcela da sociedade civil organizada. Juntos, ergueram uma barreira que não só limitou a capacidade do ex-capitão de produzir estragos irremediáveis, mas fez gorar seus planos golpistas, depois da derrota nas urnas.

Ainda assim, a história da resistência democrática não estará contada por inteiro sem que nela se inclua a ação silenciosa de setores importantes da burocracia às tentativas de desmanche da capacidade de ação estatal orientadas pelo Planalto. Esse capítulo pouco conhecido é um dos assuntos centrais do livro "Desmonte e reconfiguração de políticas públicas (2016-2022)", recém-publicado pelo Ipea (Instituto e Pesquisa Econômica Aplicada). É o respeitável resultado do trabalho de 40 pesquisadores coordenados por Alexandre de Avila Gomide, Michelle de Sá e Silva e Maria Antonieta Leopoldi.

Como a ninguém é dado ignorar, investidas de desmonte não faltaram nos quatro anos do pesadelo de desgoverno do qual o país há pouco despertou. Só que, em vez de apenas fazer a autópsia do desastre, a obra discute as condições que permitiram que a ele se resistisse, ora ganhando, ora perdendo.

Políticas mais antigas, ancoradas em estruturas estatais com burocracias fortes, dirigidas a um leque amplo de beneficiários e com reconhecimento social se revelaram mais resilientes do que políticas de criação recente, cercadas de menor consenso social e implementadas por estruturas mais frágeis.

Assim, embora a saúde, a cultura, o meio ambiente e a proteção das populações indígenas tenham sido igualmente expostas à mistura tóxica de ignorância, incompetência e más intenções do último quadriênio, as duas primeiras áreas sobreviveram melhor a suas investidas de terra arrasada. Nelas, servidores públicos experimentados tiveram condições de ir tocando as atividades em silêncio e, não raro, à revelia de seus ministros.

Registrar e reconhecer essa resistência em surdina —bem como entender as condições que a tornaram possível— é tarefa incontornável quando se trata de fortalecer a capacidade estatal de prover respostas às muitas necessidades da população. Isso certamente obriga deixar de lado estereótipos que descrevem um Estado balofo e povoado por marajás que só pensam no seu bem-bom. Não há política apta a ficar em pé sem burocracia bem preparada para executá-la.

*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

Um comentário:

  1. Mesmo porque a maioria do funcionalismo público ganha pouco,os marajás são poucos.

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