O Globo
UE exigiu do Brasil o inaceitável para fechar
a negociação. Além disso, a sombra da extrema direita na Argentina prejudica o
avanço do acordo entre os blocos
A União Europeia exigiu o inaceitável
durante os recentes desdobramentos da negociação. Quer que a aferição do
desmatamento da Amazônia não seja feita pelo Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais, o INPE. Quer impor o monitoramento por institutos europeus. O INPE é
uma instituição que custou a ser feita, exigiu grande empenho e investimento
por décadas, e recentemente sobreviveu ao ataque frontal do governo Bolsonaro.
Imagina se seria o governo Lula a aceitar que ele seja colocado de lado, em
favor do que quer que fosse?
Há outros pontos de dificuldades, no item compras governamentais, mas a tentativa de tirar o INPE de seu papel institucional é que se tornou uma pedra inamovível neste acordo. O governo não tem entrado em detalhes, e quando critica os europeus fala apenas do protecionismo, principalmente o francês, que é notório. Mas o que realmente pegou foi isso.
Curioso é que é um momento em que Brasil e
Europa estão de acordo sobre os pontos principais: a necessidade de proteger a
Amazônia, de fortalecer os órgãos de controle, de combater o crime e ter metas
de desmatamento zero. Em 2019, quando houve a assinatura do acordo, nada havia
em comum nesta questão, que é hoje definidora. Logo depois, por óbvio, empacou
na questão ambiental. Agora, isso poderia ser removido, mas eles exigem que não
seja o INPE a autoridade brasileira do monitoramento. O órgão científico brasileiro
tem respeito internacional, e mostrou robustez institucional na briga recente
com a extrema direita.
Mas esse é mesmo o acordo dos fantasmas
sucessivos. O atual foi inventado pelos europeus. Mas outro acaba de aparecer
no horizonte argentino. O cenário de que a extrema direita governe a Argentina,
com um clone de Bolsonaro e Trump, aumenta a improbabilidade de se fechar um
acordo bloco a bloco.
A Argentina é o país capaz de recriar
várias crises simultaneamente. O Brasil pelo menos viveu a crise inflacionária
e de dívida externa entre o começo da década de 1980 e meados de 1990. A crise
política que levou a um governo de extrema direita, com um presidente de falas
e comportamentos delirantes e insultuosos, ocorreu só agora, entre 2019 e 2022.
Lá eles parecem querer unir o pior da economia com o pior da política. Ontem, a
crise econômica se agravou com alta do dólar em 22%, juros com taxas de 118% ao
ano, inflação anual de 115,6% registrada em junho e a sombra do fortalecimento
da extrema direita.
Há ainda chance de a Argentina evitar a
eleição de um governante como Javier Milei, porque afinal o que houve agora
foram as primárias. O país vai passar até o fim do ano pelos dois turnos das
eleições. Mas, convenhamos, tanto a esquerda, quanto a direita erraram na
condução da economia e levaram os argentinos a um tormento econômico que parece
sem fim. É exatamente nessa conjuntura que surgem pessoas como Javier Milei com
seu projeto desconexo e desorganizador.
Enquanto essa sombra pairar sobre a
Argentina, pouca chance há de o acordo entre os dois blocos sair do papel, das
intenções, dos discursos para a realidade. E ainda que o pior cenário seja
afastado, a desorganização econômica argentina já começou a piorar. Ontem houve
maxidesvalorização do peso. Isso vai alimentar a inflação e os temores de novos
confiscos como o famoso corralito.
Mesmo se não houvesse a desordem econômica
e a extrema incerteza política argentina, haveria esse outro obstáculo a
paralisar as negociações pelo lado do Brasil. Eu conversei com autoridades que
me disseram que não há possibilidade de se aceitar qualquer acordo que tire a
autonomia do INPE. É difícil construir e manter instituições. E o Brasil acaba
de passar por um teste de estresse de grande magnitude.
É lamentável que a União Europeia não tenha
entendido o que foi a resistência institucional brasileira dos últimos quatro
anos. A Argentina tem a origem da sua crise exatamente no enfraquecimento de
órgãos do estado. Um clássico desse fenômeno foi o desmonte do Indec, o IBGE argentino,
feito pelo governo Cristina Kirchner. Levou ao aumento da inflação e da crise
de confiança nos indicadores. Depois Cristina fez uma intervenção no Banco
Central, também desastrosa. Milei propõe, sem explicar como, acabar com o Banco
Central. A qualidade das instituições é parte fundamental de qualquer projeto
de estabilidade econômica e democrática.
Verdade.
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