sábado, 19 de agosto de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Regulação das apostas não pode se limitar a taxação

O Globo

Cobrar impostos é importante, mas é preciso também zelar pela credibilidade dos esportes

No fim do mês passado, o governo publicou uma Medida Provisória para regulamentar as apostas esportivas no Brasil, iniciativa necessária em vista da expansão significativa da atividade no mundo inteiro, do vácuo jurídico existente no país e das inúmeras fraudes que têm surgido afetando a credibilidade do esporte. Agora o Planalto prepara uma estrutura para fiscalizar as novas regras.

O plano é criar a Secretaria Nacional de Prêmios e Apostas, vinculada ao Ministério da Fazenda. A equipe deverá reunir agentes da Polícia Federal (PF) e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que passarão a monitorar as empresas de apostas, conhecidas como bets. Pelo projeto, a nova estrutura, criada por decreto, terá de 54 a 65 cargos e custo estimado de R$ 4 milhões ao ano. Será dividida em quatro subsecretarias: credenciamento, monitoramento, fiscalização e sanção.

Pelo que se desenha, fica claro que o governo está preocupado essencialmente com a arrecadação. Não que isso não seja importante. Sem dúvida, um dos motivos que exigem a regulamentação das apostas no Brasil é a necessidade de taxar as empresas que atuam num setor lucrativo com enorme potencial de crescimento. Nada mais justo que contribuam com o Estado. Boa parte do dinheiro arrecadado será destinada a rubricas importantes do Orçamento, como seguridade social, Ministério do Esporte, Fundo Nacional de Segurança Pública e educação básica, além de aos próprios clubes.

Pela estimativa do governo, a taxação das empresas de apostas proporcionará arrecadação de cerca de R$ 2 bilhões em 2024, e o valor poderá chegar a R$ 12 bilhões nos próximos anos. Segundo as regras estabelecidas na MP, a alíquota será de 18% sobre a receita bruta. A licença de operação custará R$ 30 milhões. O Ministério da Fazenda calcula que ao menos 70 empresas estejam interessadas em regularizar sua situação, número até modesto considerando que cerca de 500 atuam no país.

Por mais importante que seja taxar essas empresas num momento em que aumentar a receita será necessário para cumprir as metas do arcabouço fiscal, a questão das apostas esportivas não pode ser reduzida à arrecadação. Isso ficou evidente quando veio à tona no início do ano o escândalo de manipulação de resultados para favorecer apostas fraudulentas. Investigações da polícia e do Ministério Público de Goiás mostraram que jogadores recebiam propina para cometer pênaltis e levar cartões em campeonatos regionais e nacionais, de modo a gerar lucros para quadrilhas de apostadores.

Claro que será necessário fiscalizar se as empresas cumprirão as obrigações previstas na regulamentação, mas é preciso cuidar também da parte esportiva, pois os jogos — e tudo o que estiver ligado a eles — são o objeto das apostas. O esquema revelado pelo MP de Goiás, mais amplo do que se imaginava, afeta a credibilidade do futebol brasileiro. Por isso federações, clubes, atletas, CBF e Ministério do Esporte também deveriam se envolver no monitoramento. Se o torcedor perder a confiança nos campeonatos, as apostas não farão mais sentido e, sem elas, não haverá arrecadação. Todos perderão.

Trapalhada do governo paulista reflete fantasia sobre educação digital

O Globo

Governador Tarcísio não teve opção e recuou da decisão de abrir mão de material didático do MEC

Fez bem o governador de São PauloTarcísio de Freitas, em recuar da intenção de desligar o estado do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do MEC, usando apenas material próprio na sala de aula. Há duas semanas o secretário da Educação, Renato Feder, anunciara que todo o material didático no ciclo básico seria próprio, apresentado em formato digital. Diante da gritaria, Tarcísio já se comprometera a oferecer também apostilas impressas aos 3,5 milhões de alunos da rede pública paulista. Agora, com uma liminar da Justiça suspendendo a saída do PNLD, o recuo foi total.

O episódio expõe como o debate sobre educação no Brasil está distante das salas de aula. A resistência de Feder aos livros do MEC tem muito de ideológica — até em livros de matemática ou clássicos literários os extremistas enxergam a sombra do “comunismo” — e pouco de racional. A discussão sobre o formato em que o material didático é oferecido não pode obscurecer o mais importante: seu conteúdo. Pesquisadores apontaram diversos problemas no material digital do governo paulista. Ao mesmo tempo, a rede municipal da cidade de São Paulo desde 2017 adota apostilas próprias com os livros distribuídos pelo MEC. Bem usado, um formato complementa o outro.

A discussão também é contaminada pela fantasia que vê o uso de ferramentas digitais na escola necessariamente como avanço. A pandemia deveria ter deixado claros os limites da tecnologia. “A aula digital remota não funcionou”, diz Alexandre Schneider, ex-secretário municipal de Educação de São Paulo e pesquisador da FGV-SP. Houve atraso na alfabetização, mesmo nas escolas privadas. O ensino remoto prejudicou tanto mais ricos quanto mais pobres. Alunos de uma mesma série aprenderam menos na pandemia do que com as aulas presenciais depois dela.

Em maio, a Suécia paralisou o projeto de digitalização das aulas que deveria ser acelerado neste ano. A ministra da Educação, Lotta Edholm, culpa o uso de telas em sala de aula pela queda no nível de compreensão na leitura das crianças suecas no teste internacional de alfabetização (Pirls, na sigla em inglês). O governo sueco decidiu investir € 105 milhões em dois anos na compra de livros didáticos.

A pesquisa Estudantes, Computadores e Aprendizado: Fazendo a Conexão, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), já mostrava em 2015 que vários países não obtinham melhoras claras no rendimento dos alunos investindo em tecnologia nas salas de aula. A OCDE aconselha que o básico em alfabetização e matemática seja ensinado da forma tradicional. Isso facilita o uso de ferramentas digitais mais à frente. “O fetiche da tecnologia termina atrapalhando seu uso”, diz Schneider. “É preciso partir do que se quer ensinar para usar a tecnologia, e não partir da tecnologia para definir o que fazer com os estudantes.” A regra deveria ser exposta na parede do gabinete de cada secretário de Educação.

 Por trás da Bolsa

Folha de S. Paulo

Temores do mercado estão ligados a cenário externo, mas contas do governo pesam

Houve melhora recente, sem dúvida, das expectativas acerca da economia brasileira, em parte por decisões até aqui responsáveis, em geral, do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —e que felizmente não deram consequência à retórica imprudente do mandatário.

Mesmo assim, as últimas semanas revelaram que o quadro ainda é delicado, como evidenciado pela sequência inaudita de quedas da Bolsa de Valores, além de nova escalada das cotações do dólar.

Nunca é seguro embasar qualquer prognóstico em oscilações do mercado financeiro, para o bem ou para o mal. Deve-se apontar, também, que parte expressiva da recente onda negativa vem do exterior.
Renovados temores de que os juros nos EUA poderão ter que subir ainda mais contribuíram para a valorização da moeda americana.

A crescente evidência de que a China passa por persistente desaceleração e riscos recessivos, além disso, sugere potencial contágio para economias emergentes que se ancoraram no dinamismo chinês nas últimas décadas.

Tais fatores são um lembrete de que não há espaço para complacência ou descuido do governo na política econômica.

A divulgação da nova regra de controle das contas públicas, em vias de aprovação final na Câmara dos Deputados, e a permanência da meta de inflação em 3% para 2026 contribuíram para que o Banco Central iniciasse um ciclo de cortes de juros, que deve se estender até o próximo ano.

A atividade produtiva também surpreendeu positivamente até agora. Ainda que muito do resultado esteja ancorado na safra recorde, que expandiu o PIB do setor em 20% no primeiro trimestre, por ora há desempenho razoável dos serviços e do comércio.

A contínua robustez do mercado de trabalho, com bom incremento da renda e menor desemprego, é outro ponto positivo.

Entretanto os sinais preocupantes não advêm apenas do exterior. Em particular, vai ficando claro que o governo terá grande dificuldade em cumprir a meta de zerar o déficit fiscal em 2024.

A arrecadação de impostos e a economia dão sinais de desaceleração. Diante da alta continuada das despesas, as projeções para o crescimento da dívida pública devem voltar a piorar.

O problema é que a estratégia da equipe econômica depende de uma exorbitante elevação da carga tributária, que por sua vez se ancora em projetos de difícil tramitação no Congresso. Ruídos políticos em torno dessa agenda já aparecem.

Será fundamental a aprovação já tardia da regra fiscal e a elaboração de um projeto crível de Orçamento para 2024, que precisa ser enviado ao Congresso neste mês.

Carbono em alta

Folha de S. Paulo

Brasil enfim cria proposta de mercado de emissões, mas de implementação vagarosa

Com mais de dez anos de atraso, o governo brasileiro dá largada na ideia de um mercado de emissões, um dos meios para mitigar o aquecimento global. Na segunda (21), o tema entra na pauta do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável, mas não será em foro com 246 integrantes que se alinharão todos os detalhes.

O primeiro mercado de carbono em larga escala foi o Sistema de Comércio de Emissões da União Europeia, de 2005. A partir do estabelecimento de um teto para emissões, grandes empresas que produzirem menos gases do efeito estufa podem vender créditos para aquelas que ultrapassam o limite.

Por aqui nunca prosperou o debate sobre tal dispositivo, que estimula redução de emissões a partir de mecanismos de mercado. Setores poluentes, como transportes e geração de energia por combustíveis fósseis, faziam pressão contrária, e adeptos do estatismo duvidavam da capacidade do setor privado de liderar a contenção.

Agora, há um anteprojeto do Planalto. Parece chegar ao fim a inércia palaciana que destacava a redução do desmatamento como única contribuição brasileira no combate contra mudanças climáticas.

A proposta abarca só uma parcela das emissões nacionais (o restante vem principalmente do agronegócio). Sem cortes nos outros setores, mesmo a redução a zero da devastação florestal será insuficiente para cumprir obrigações do Brasil no Acordo de Paris (2015).

Sair da prostração não garante o sentido de urgência que a crise do clima impõe. O que se esboça na proposta do governo é um mercado de carbono com implementação vagarosa e paulatina, três anos após alinhavadas todas as regras.

Ora, a ciência climatológica projeta que o planeta precisa reduzir emissões quase à metade até 2030.

A questão crucial restará na entidade encarregada de operacionalizar e controlar o sistema de comércio de carbono. Uma comissão com duas dezenas de ministros, como cogitado, não parece o órgão mais propício para alocar emissões entre setores que lutarão para reduzir o próprio ônus.

Uma autoridade nacional para regular a questão climática pode ser boa ideia. Até que se aprovem estrutura e recursos, porém, tempo precioso será desperdiçado.

A atmosfera não tolera inação. Assim o demonstram eventos climáticos extremos, cada vez mais frequentes, a acossar as populações mais pobres da Terra.

O novo Aras, o velho Fouché

O Estado de S. Paulo

O procurador-geral da República não tem nenhum pudor em mostrar-se servil ao governo de plantão. Ao contrário, faz disso sua marca registrada, na expectativa de mais uma recondução

Em 2019, ao indicá-lo para chefiar a Procuradoria-Geral da República (PGR), o presidente Jair Bolsonaro disse que Augusto Aras seria a “rainha” no tabuleiro de xadrez de seu governo, ou seja, a peça mais poderosa na defesa do “rei” e no ataque aos seus desafetos. Era uma afirmação absolutamente equivocada, tendo em vista o papel institucional que cabe ao procurador-geral da República desempenhar. Em vez de servir à ordem jurídica e ao regime democrático, como determina a Constituição, o cargo mais alto do Ministério Público iria servir a Jair Bolsonaro.

O fato é que, ao longo de três anos e meio – de setembro de 2019 até o fim de 2022 –, Augusto Aras não se sentiu constrangido com as palavras de Jair Bolsonaro. Ao contrário, fez delas o seu lema. A PGR foi fiel escudeira do governo federal, mesmo diante dos casos mais escabrosos – com destaque para as omissões na pandemia e os ataques à democracia. Segundo o procurador-geral da República, não havia motivo para a PGR atuar, pois tudo estava sempre dentro da mais plena normalidade institucional.

A proteção de Augusto Aras a Jair Bolsonaro não se baseou apenas em inação. Ele trabalhou ativamente para dificultar as investigações do Ministério Público sobre as mobilizações golpistas, extinguindo grupos de investigação e devolvendo a procuradores pedidos de informações ao Exército e à polícia sobre acampamentos em quartéis.

A ferrenha atuação de Augusto Aras em favor do bolsonarismo durou, no entanto, enquanto Jair Bolsonaro esteve no poder. Bastou a mudança de presidente da República para que a PGR de Augusto Aras inaugurasse uma nova compreensão do Direito e da realidade.

Em tese, essa alteração repentina de posicionamento deveria gerar constrangimento. No caso de Augusto Aras, parece que ele busca exatamente transmitir essa impressão. Quer deixar estampada sua subserviência. Quer ser visto como o primeiro aliado do governante de plantão. Quer ser o procurador-geral da República dos sonhos de todo presidente da República.

Não há limites para a desfaçatez. O governo Lula ajuizou no STF uma ação inteiramente absurda questionando a forma como foi feita a privatização da Eletrobras. Pois bem, Augusto Aras pôs a PGR a serviço de Lula e defendeu o aumento do poder de voto do governo na Eletrobras. Os argumentos são esdrúxulos. “A União, até então controladora da empresa, presenciou, de mãos atadas, os acionistas minoritários limitarem seu poder de voto, em benefício exclusivo deles e em prejuízo exclusivo da União”, disse Augusto Aras, numa inversão da história. Ressalte-se: o que o procurador-geral da República questiona agora foi feito durante o governo Bolsonaro, quando ele não viu nenhum problema.

São muitos os casos de mudança de posição da PGR para agradar ao governo Lula. Neste ano, Augusto Aras passou a defender a responsabilização das plataformas digitais por conteúdos publicados pelos usuários nas redes sociais; a postular a inconstitucionalidade da Lei das Estatais; a questionar o indulto natalino concedido por Jair Bolsonaro, dizendo que era excessivo e desproporcional; a defender a essencialidade da gasolina para fins de incidência do ICMS.

O novo Aras, o do governo Lula, pediu também que o STF obrigue o Congresso a regulamentar o direito do trabalhador contra demissões arbitrárias ou sem justa causa. Em uma ação envolvendo o Marco do Saneamento, disse que a Corte não deveria analisar o pedido contra o serviço estatal sem licitação, bem ao gosto do governo federal. E, rejeitando suas próprias declarações anteriores, criou uma “Comissão de Defesa da Democracia” – vejam só – no dia 9 de janeiro.

Por ter servido a diferentes regimes, transitando com extrema facilidade por diversas correntes ideológicas, o político francês Joseph Fouché (17591820) entrou para a história como o paradigma do oportunismo e da ausência de convicções na vida pública. Sua escolha era sempre pelo lado vencedor. Na vida política, isso gera indignação. No Ministério Público, é atestado de incompatibilidade com a função.

As relações perigosas de Bolsonaro

O Estado de S. Paulo

É espantosa a tranquilidade com que se admite que Bolsonaro, enquanto presidente, tratou pessoalmente com um reconhecido trambiqueiro sobre planos golpistas para desacreditar as urnas

O depoimento prestado por Walter Delgatti Neto, vulgo “Vermelho”, à CPMI do 8 de Janeiro deve ser recebido com muita cautela, tanto pela sociedade em geral como pelas autoridades – políticas, policiais e judiciárias – incumbidas de investigar a tentativa de golpe de Estado ocorrida no início do ano. As razões para o cuidado são elementares. Em primeiro lugar, Delgatti muito disse à CPMI para implicar o ex-presidente Jair Bolsonaro como líder de uma trama golpista, mas, a rigor, não provou suas alegações mais graves. Além disso, o depoente é um criminoso condenado que está preso, de modo que não pode ser descartada a possibilidade de que suas gravíssimas acusações façam parte de uma estratégia para obtenção de algum tipo de alívio penal. Tudo precisa ser muito bem apurado.

Dito isso, um fato restou incontestável a partir do depoimento do tal “Vermelho” aos parlamentares. Bolsonaro, então presidente da República, manteve diálogos com o autointitulado “hacker” e, pior, abriu as portas do Palácio da Alvorada para receber o vigarista em café da manhã no dia 10 de agosto de 2022, às vésperas, portanto, do início oficial da campanha eleitoral. Por si só, a presença de um notório trambiqueiro na residência oficial da Presidência é um escândalo sem precedentes. Trata-se de mais uma evidência da degradação moral a que Bolsonaro submeteu o cargo que lhe fora confiado pelos eleitores em 2018.

O próprio senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), presente na comissão, admitiu que o pai recebeu “Vermelho” no Alvorada. O encontro, segundo o filho “01”, teria se prestado a “uma sondagem” para que o “hacker” pudesse atuar “junto com aquele grupo das Forças Armadas” que estava no TSE a mando de Bolsonaro para supostamente encontrar vulnerabilidades nas urnas eletrônicas. Ou seja, “Vermelho” teria atuado como uma espécie de consultor técnico, digamos assim, daqueles militares que integraram a comissão especial designada pelo Ministério da Defesa para inspecionar o código-fonte das urnas eletrônicas, como uma das partes da Comissão de Transparência das Eleições formada pelo TSE.

Talvez o senador Flávio Bolsonaro não tenha se dado conta da extrema gravidade do que admitiu perante o País, desde a sala de sessões da CPMI do 8 de Janeiro. Ou talvez o dedicado filho de Bolsonaro ache normal e aceitável que um presidente da República entabule negociações com um fora da lei para ajudá-lo a alimentar suspeitas em relação à higidez do sistema eleitoral brasileiro, o que configura evidente trama golpista. É estarrecedor.

De acordo com o depoimento prestado à CPMI, Delgatti teria sido encaminhado ao Ministério da Defesa pela primeira vez por Jair Bolsonaro em pessoa, logo após aquele famigerado desjejum no Alvorada. Outras quatro visitas aos militares teriam ocorrido. Fossem realmente sérios e estivessem imbuídos de aferir, de fato, a segurança das urnas eletrônicas, os militares que integraram a comissão especial eleitoral deveriam ter posto Delgatti da porta para fora no primeiro encontro, se não ter lhe dado voz de prisão.

Em nenhum momento no curso dessas maquinações o interesse público esteve em alta conta, vale dizer, não havia uma genuína iniciativa, nem de Bolsonaro nem dos militares que desonraram a farda ao prestar-lhe vassalagem, de colaborar para que a confiança no sistema eleitoral brasileiro, de resto atestado como seguro por instituições e países insuspeitos, fosse compartilhada pelo maior número de cidadãos. Deu-se o exato oposto. O objetivo era justamente criar ainda mais confusão no País – e por meio de um rematado trapaceiro a quem teria sido pedido até que simulasse uma “invasão” a uma urna fajuta em cima de um palanque com o objetivo de “provar” a mentira de Bolsonaro segundo a qual as eleições no Brasil seriam suscetíveis à fraude.

O País merece uma investigação extremamente profissional dessas e de outras suspeitas gravíssimas que pairam sobre Jair Bolsonaro e os que a ele podem ter se associado para subverter a democracia. O peso das leis é o maior instrumento de defesa do Estado Democrático de Direito.

Precipício argentino

O Estado de S. Paulo

País vive caos provocado por desvalorização, inflação, recessão e resultado das primárias

A Argentina vive a situação mais representativa do derretimento de uma economia: a indefinição de preços. Do valor da moeda nacional ao dos bens da cesta básica, as referências monetárias diluíram-se de vez depois da desvalorização de 18% da cotação oficial do peso anunciada pelo Banco Central no último dia 14. Da produção e importação de insumos aos quiosques de doces e cigarros, passando pelos consumidores, a economia foi abduzida pelo caos. Rumores surgidos no vácuo desse anúncio, há tempos exigido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) como correção essencial e inevitável da taxa de câmbio, espraiaram ainda mais instabilidade no país e a incerteza mundo afora sobre a real profundidade do abismo econômico argentino.

O caos completa-se com o cenário de queda de 2,5% no PIB de 2023, de estimativa de taxa de inflação de 120% até dezembro, de volume raso de reservas internacionais e de descumprimento da meta de déficit primário das contas públicas. É certo que governos de diferentes colorações ideológicas contribuíram para paralisar investimentos e desestabilizar a economia nas últimas décadas. A “criatividade” refletiu-se nos calotes da dívida pública, no estatismo, no descumprimento de objetivos traçados e, mais recentemente, nas 16 taxas de câmbio existentes nesse país onde cada espirro desata uma corrida ao dólar. O resultado mais triste desse “esforço” está na presença de 40% dos argentinos na faixa de pobreza.

O país tem sido historicamente um celeiro de fracassos econômicos, seja qual for o grau de populismo de seus governos. O peronista Alberto Fernández não escapou a essa sina. Mas, por sorte, como herdeiro de um acordo de US$ 45 bilhões com o FMI, seu governo foi forçado a reprimir parte dos impulsos demagógicos para receber os recursos do Fundo – o que gerou uma crise política com aliados de Cristina Kirchner. Pode-se imaginar que o quadro seria bem pior sem isso.

Um dos compromissos devidos ao FMI era justamente a correção cambial. A escolha do dia seguinte às eleições primárias foi um erro do Banco Central e do ministro da Economia, Sergio Massa, candidato peronista à Casa Rosada em outubro. Se adotada meses antes, estaria diluída. O impacto da desvalorização abrupta, porém, somou-se ao da vitória nas urnas do deputado de ultradireita, Javier Milei, nas eleições primárias de 13 de agosto. Suas propostas de “dinamitar” o Banco Central, dolarizar a economia, bloquear o comércio com a China e retirar o país do Mercosul tornaram-se motivo de pânico dentro e fora das fronteiras do país.

A desorganização do varejo pela incerteza sobre o valor da própria moeda, exposta em reportagem do Estadão, é péssimo sinal, mas não chega a ser novidade na Argentina. A última vez deu-se no início de 2002, quando a alternativa dos argentinos à falta de dinheiro na praça foi o escambo. A gravidade é maior agora pela proximidade das eleições. O risco de a economia do país cair para andares mais fundos e desconhecidos do precipício está dado. Será preciso rapidez e seriedade para evitá-lo.

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário