quarta-feira, 23 de agosto de 2023

O que a mídia pensa: editoriais / opiniões

Brasil deveria criar distância da China em reunião do Brics

O Globo

Ampliação não pode transformar bloco num veículo para interesses antiamericanos dos chineses

Com a presença de todos os governantes, com exceção do russo Vladimir Putin, que não viajou porque corria o risco de ser preso, a cúpula do Brics — bloco formado por Brasil, RússiaÍndiaChina e África do Sul, sede do encontro — é marcada pelo debate sobre sua expansão. O plano da China é atrair novos integrantes para tentar criar um competidor ao G7, formado pelas maiores economias do Ocidente e pelo Japão. Presente na reunião, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva precisa manter o equilíbrio para não sucumbir à retórica antiocidental.

Sem dúvida o Brics é uma plataforma útil para o Brasil. Nas relações internacionais, permite uma atuação não alinhada e reforça a posição de liderança regional. Do ponto de vista econômico, aumenta a visibilidade do país por associá-lo a dois motores do PIB global: China e Índia. Para uma potência média e uma economia emergente como a brasileira, o Brics tem relevância.

Em seu discurso nesta terça-feira, o presidente Lula não desperdiçou a chance de falar das oportunidades de negócios no Brasil. Citou o PAC, plano do governo para infraestrutura, com ênfase em rodovias, ferrovias, hidrovias, portos e aeroportos. Disse que a geração de energia renovável será prioridade, sem se esquecer de mencionar o hidrogênio verde. Para arrematar, Lula falou que o programa está aberto a todos os investidores interessados.

Embora a presença no Brics seja estratégica, é indiscutível que o Brasil tem laços culturais, econômicos e políticos históricos com o mundo ocidental. Portanto, à medida que a China tenta aumentar sua área de influência, o desafio é explorar as vantagens apresentadas pelo bloco, sem se afastar dos valores ligados ao Ocidente que fundamentam a política externa brasileira.

Hoje, estar no Brics não representa alinhamento automático com os chineses. Que o diga a Índia, que mantém disputa territorial com a China. Mas um Brics ampliado colocaria a China em indiscutível posição de liderança e poderia transformá-lo num veículo para as ambições antiamericanas dos chineses. Seria um risco para o Brasil. Na África do Sul, Lula tem a chance de influenciar os critérios e princípios para a adesão ao bloco nas conversas com o chinês Xi Jinping, o sul-africano Cyril Ramaphosa e o indiano Narendra Modi (Putin participa por videoconferência).

O pior que pode acontecer para o Brasil é Lula dar ouvidos à retórica terceiro-mundista de seu assessor Celso Amorim, que parece acreditar que o Brics pode se tornar alternativa ao G7. A ex-presidente Dilma Rousseff, atualmente à frente do banco do Brics, também está na África do Sul. Em encontro realizado em Pequim no início de julho, ela exemplificou até onde vai o ranço ideológico ao condenar as potências ocidentais pela imposição de um único modelo de democracia. Só faltou exaltar as “democracias” chinesa ou russa. Lula fará bem se sempre lembrar os valores inegociáveis da sociedade brasileira.

STF errou ao permitir que juiz atue em processo de escritório de familiar

O Globo

Ainda que a regra atual imponha dificuldades, aumentará suspeita de parcialidade com a nova decisão

O Supremo Tribunal Federal (STF) cometeu um erro ao formar maioria para derrubar a norma do Código de Processo Civil que impedia juízes de julgar processos em que estejam envolvidos escritórios de advocacia onde seus cônjuges ou parentes trabalhem. Ao menos sete integrantes da Corte têm parentes advogados. Ainda que continue válido o impedimento do juiz nos processos em que um familiar atue diretamente, a flexibilização arranha a credibilidade da Corte, pois beneficia as famílias dos próprios ministros.

O exame da questão foi motivado por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida pela Associação de Magistrados Brasileiros (AMB) em 2018. Para a AMB, havia um problema no dispositivo que impedia o juiz de julgar “cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório”. Segundo a entidade, não havia como pôr a norma em prática quando a ação era movida por advogado de outra banca. O juiz, ainda de acordo com a associação, não tinha como saber se uma das partes em uma ação era cliente de um parente seu noutras demandas na Justiça.

Em vez de sugerir mecanismos para melhorar a transparência nos casos obscuros, a opção de sete dos 11 ministros do STF foi acabar com o impedimento em todos os casos. Há três anos, quando a discussão sobre o tema começou, o ministro Edson Fachin, relator do processo, foi certeiro ao citar o Código Mundial de Conduta de Magistrados, segundo o qual um juiz deve se considerar impedido quando estiver em jogo o interesse econômico de alguém de sua família. Fachin lembrou, com razão, que o ganho muitas vezes pode ser indireto. A Advocacia-Geral da União e Procuradoria-Geral da República também declararam ser a favor da manutenção do impedimento em sua formulação mais ampla.

A tese que prevaleceu foi a do ministro Gilmar Mendes, primeiro a votar contra a norma. Gilmar argumentou que o impedimento dava às partes a possibilidade de definir quem julgaria a causa. A hipótese é que escritórios com grande poder econômico contratam parentes daqueles juízes que gostariam de evitar. Os ministros Dias Toffoli, Luiz Fux, Alexandre de Moraes, Nunes Marques, André Mendonça e Cristiano Zanin acompanharam o entendimento de Gilmar. O ministro Luís Roberto Barroso e as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia concordaram com Fachin, mas saíram vencidos.

Escritórios de advocacia contam agora com mais incentivos para contratar familiares de juízes. Mesmo que não atuem diretamente nas ações, muitos têm acesso privilegiado aos magistrados em encontros informais. Independentemente da isenção de cada juiz, a suspeita de parcialidade das decisões aumentará. Perde a Justiça, perde o país.

Crescimento e emprego driblam aperto monetário

Valor Econômico

Quase nenhum dos riscos associados a um aumento dos juros se materializou

Por mais distintas que sejam as formas de atuar dos bancos centrais, a força da inflação que estão tentando debelar e as estruturas das economias nacionais, há uma enigmática coincidência nas reações ao aperto das políticas monetárias. O desemprego nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil não aumentou, e até atingiu o menor nível em décadas. Os índices de preços ao consumidor caíram, mas com uma lentidão que contrasta com a rapidez e força da alta dos juros. O crescimento foi afetado, mas não tanto quanto se temia. A economia americana avança mais do que o previsto, enquanto que a do Brasil desacelera menos que o esperado. A segunda maior economia do mundo, a China, por seu lado, perde preocupantemente ritmo sem que os juros tenham aumentado - ao contrário, o BC chinês está empenhado em reduzi-los.

EUA e China estão puxando a economia global em direções contrárias. Ainda que o índice de inflação em ambos esteja caindo, essa queda é muito mais lenta na maior economia do mundo, enquanto que a segunda já exibe deflação. Os EUA voltam a crescer no terceiro trimestre, contra todas as expectativas, enquanto que a robusto expansão do PIB chinês esperada após a pandemia não está se confirmando, a ponto de que a meta de 5,5% para o PIB este ano corre riscos sérios de não ser atingida. A zona do euro ficou no meio do caminho: não vai crescer muito, mas parece ter escapado de uma recessão que a princípio parecia ser severa. Nenhum país emergente relevante entrou em retração profunda.

Curiosamente, quase nenhum dos riscos associados a um aumento dos juros nas principais economias e nas emergentes se materializou. Até o momento, os custos bem maiores do financiamento externo não provocaram nenhum default importante, em que pese a elevação muito rápida do endividamento dos países emergentes após a crise financeira de 2008 - uma das consequências mais prováveis do aperto monetário global. Nos países ricos, as empresas alavancadas de segunda linha, outra frente relevante de potenciais problemas, não foram sufocadas pela elevação dos juros, mesmo com o alargamento do spread entre as taxas básicas e as que pagam seus “junk bonds”.

Em julho, o balanço de riscos indicado pelo Fundo Monetário Internacional continuava pendendo para o lado negativo. Os fatores que levariam à queda da inflação, como uma recessão severa, decorrente da política monetária austera, que poderia resultar em “overshooting” ou em séria crise financeira, especialmente para instituições com exposição ao mercado imobiliário, não se materializaram no curto prazo. A súbita elevação dos juros derrubou bancos regionais americanos e o Credit Suisse, mas seus efeitos não se generalizaram. Outro risco assinalado, uma frustrante recuperação chinesa, continua no ar mas, mesmo assim, a pior expectativa de expansão não fica abaixo de 4%, o que está longe de ser um desastre.

Os fatores negativos apontados pelo FMI tampouco se confirmaram plenamente. A inflação ainda está longe de se aproximar das metas na Europa, Estados Unidos e Brasil, mas recuou bastante, sem que isso, no entanto, permita aos BCs afirmarem com segurança que a batalha foi ganha. Uma condição para o amortecimento das tensões inflacionárias seria um aumento do desemprego que induzisse a uma guinada posterior de baixa de juros, mas isso não aconteceu. O desemprego é o mais baixo em 50 anos nos EUA, Europa, e no Brasil está abaixo de todas as expectativas.

A ameaça de estagflação, tida como séria por muitos analistas, parece hoje menos plausível. A inflação é maior do que deveria ser, pelos padrões dos sistemas de metas de inflação, mas o crescimento também, algo que se observa igualmente no Brasil. Por essa razão, outros analistas preferem acreditar que o que está fora do lugar é a meta de inflação, que deveria ser maior do que a corrente. A única coisa certa, pelas projeções dos BCs, é que os índices de preços só estarão próximos dos objetivos no ano que vem (caso do Brasil) ou em 2025 (Europa e EUA).

Os enormes estímulos fiscais e monetários dados durante crise de 2008 e, depois, na pandemia, amorteceram a queda no consumo enquanto os juros negativos impulsionaram a oferta. Entre os dois, havia uma demanda reprimida de serviços que ainda mantém a inflação acima do desejável. O desafio dos BCs hoje é saber se é necessário uma dose extra de aperto ou a manutenção das taxas atuais por mais tempo do que o esperado. Ambas as receitas derrubarão o consumo, o emprego, o crescimento e a inflação. A questão mais difícil, porém, é a dosagem do aperto. O BCE e o Fed parecem contar informalmente com o melhor cenário: pouso suave ou recessão tépida e breve. No Brasil, o aperto pode levar a mais um par de anos de expansão medíocre.

Incertezas levam volatilidade aos ativos, em um ambiente carregado de conflitos entre EUA e China. A tarefa da estabilização econômica, após choques sucessivos, não está concluída e há um espaço não desprezível para pioras. Como lembra um economista, “os preços estão subindo menos, não caindo” (Chris Giles, FT).

Imagem abalada

Folha de S. Paulo

Dano à reputação das Forças pode ser revertido com investigação séria e punições

Em boa hora o general Tomás Paiva mostra-se preocupado com os rumos da corporação que dirige. Na condição de comandante do Exército, ele distribuiu uma ordem interna com diversas medidas destinadas a resgatar o brio dos militares e restabelecer a imagem da instituição, degradada após os anos de governo Jair Bolsonaro (PL).

Ressaltando a necessidade de o Exército pautar-se pela legalidade e pela legitimidade, o general lembra que aos fardados competem direitos e deveres distintos daqueles que se aplicam aos demais segmentos da sociedade —a qual nem sempre, segundo o raciocínio, toma conhecimento das ações desenvolvidas pela Força terrestre.

Consta que Tomás pretende atingir dois alvos com apenas um tiro. No âmbito interno, mira sinais de insatisfação com a conjuntura política; no externo, aponta para o desgaste provocado pelas graves acusações que pairam sobre membros das Forças Armadas.

Admita-se a precisão do diagnóstico; há muito se afirma que a incursão dos militares no campo político deixaria um rastro de estrago e contaminação mesmo na hipótese, hoje descartada, de que os artífices da imiscuição tivessem nada menos que as melhores intenções.

Se o quadro é esse, a solução deveria passar pela despolitização das Forças Armadas, pelo apoio irrestrito a investigações do sistema judicial e pela tomada de providências concretas no âmbito administrativo —resguardado sempre o direito ao devido processo legal.

Eis que o comandante faz algo diverso. Busca formas de aperfeiçoar o sistema de saúde do Exército e elevar o soldo dos militares, sobretudo daqueles de baixa patente. Propõe, além disso, a criação de pautas positivas para a instituição.

Alimenta, dessa forma, a conhecida agenda corporativista das Forças Armadas, apegadas a privilégios injustificáveis e resistentes à apuração isenta de responsabilidades em todo tipo de malfeito.

Basta ver a leniência das conclusões no inquérito militar sobre possíveis falhas da caserna durante os atos golpistas de 8 de janeiro. Ou então o vexaminoso processo sigiloso que absolveu o general Eduardo Pazuello de participação em atos político-partidários.

Cumpre recordar, a propósito, o compromisso assumido pelos chefes das três Forças em reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ministro José Múcio Monteiro, da Defesa. Na ocasião, conforme foi relatado, eles se declararam empenhados em garantir a punição de oficiais envolvidos em atos antidemocráticos.

Se pretendem reparar danos de imagem, não há melhor meio de começar do que esse.

Do feijão à picanha

Folha de S. Paulo

Isenção tributária da cesta básica deve ser aperfeiçoada para combater a pobreza

Em meio à miríade de regras especiais e subsídios questionáveis ou mesmo claramente equivocados instituídos pelo poder público brasileiro, a isenção de tributos federais para produtos da cesta básica costuma estar entre as normas tidas como mais acertadas. Nem mesmo ela, porém, está livre de falhas de concepção e execução.

Segundo cálculos recém-concluídos pelo Ministério do Planejamento, essa desoneração reduzirá a receita da União em R$ 34,7 bilhões neste 2023 —valor suficiente para pagar mais de dois meses de Bolsa Família. Em contrapartida, o benefício proporciona uma redução média de 5% dos preços das mercadorias afetadas.

O impacto da medida, em vigor há uma década, não é, portanto, desprezível. Entretanto a boa gestão pública precisa avaliar se as políticas geram os melhores resultados aos menores custos possíveis.

No caso em tela, uma primeira questão é que a isenção de PIS, Cofins e IPI sobre a cesta básica favorece também o consumo da parcela mais rica da população, às expensas do conjunto da sociedade.

Tal defeito pode ser relativizado com o argumento de que os mais abonados destinam à alimentação uma parcela de sua renda menor que a dos mais pobres. Ainda assim, trata-se de uma renúncia fiscal com deficiência de foco.

O problema se agrava porque entre os produtos atingidos estão carnes e peixes mais nobres, que não fazem parte do cardápio dos estratos propensos à insegurança alimentar —além de artigos controversos como os ultraprocessados.

Uma alternativa, discutida na tramitação da reforma tributária, seria reduzir ou eliminar a renúncia tributária e fazer uma restituição em dinheiro às famílias carentes dos tributos pagos. Embora meritória, se sua viabilidade for comprovada, a proposta enfrenta o tabu político da reoneração da cesta.

Nossos governantes e legisladores têm grande apreço por conceder vantagens e exceções a produtos e setores, aí incluídos educação, saúde, novas fábricas e exportações, sempre mencionando nobres intenções. O que em geral se omite é que tais normas especiais implicam mais impostos a serem pagos pelos demais.

A urgente simplificação do sistema brasileiro exige regras mais uniformes e estáveis —em termos bem simples, se todos pagarem, todos poderão pagar menos. Isso pode ser feito sem prejuízo das políticas fundamentais de combate à pobreza e à desigualdade, cujo desenho precisa ser aperfeiçoado.

Freio de arrumação militar

O Estado de S. Paulo

Malgrado a platitude, ordem do general Tomás para despolitizar o Exército é muito bem-vinda por relembrar aos militares seu papel e suas responsabilidades à luz da Constituição

Uma ordem burocrática do comandante do Exército não despertaria atenção não estivessem as Forças Armadas tão contaminadas pelo vírus do golpismo inoculado pelo bolsonarismo. Nesse sentido, é muito bem-vinda a Ordem Fragmentária n.º 1/2023, que o general Tomás Miguel Ribeiro Paiva fez publicar no Boletim do Exército no dia 18 passado. A ordem reitera à sociedade o compromisso do comandante de afastar o Exército da nefasta polarização política, movimento estimulado com esmero por

Jair Bolsonaro desde antes de o mau militar chegar à Presidência. Passa da hora de virar essa triste página da história republicana.

É péssimo para o País conviver com suas Forças Armadas abaladas por uma crise de confiança. É ocioso elaborar a respeito da centralidade do papel dos militares na defesa do interesse nacional em múltiplas frentes – sendo a de batalha a mais distante da realidade brasileira. E esse papel, é evidente, só pode ser bem exercido quando não pairam dúvidas sobre o Exército, a Marinha e a Aeronáutica quanto à sua credibilidade institucional e ao profissionalismo de seus integrantes. Noutras palavras: quando não se observa na atuação dos militares qualquer desvio de suas atribuições constitucionais.

A crise, contudo, aí está e não há como negá-la; como também é inescapável a conclusão de que alguns dos responsáveis pelo desgaste do prestígio das Três Armas perante a sociedade nos últimos anos envergam ou envergaram a mesma farda que passaram a desonrar por uma escolha livre e consciente de se afastar dos ditames da Constituição para se imiscuir na política. Se, por um lado, a ordem do general Tomás nada traz de novo, por outro, serve como uma espécie de “freio de arrumação”, vale dizer, é um lembrete à tropa dos papéis e responsabilidades dos militares no Estado Democrático de Direito à luz da Lei Maior.

No documento, entre outras providências, o comandante do Exército reafirma que a Força “é uma instituição de Estado, apartidária, coesa, integrada à sociedade e em permanente estado de prontidão”. Nada diferente, como se vê, do que diz a Constituição e do que dissera o próprio general Tomás em janeiro, quando, à frente do Comando Militar do Sudeste, ordenou que seus subordinados respeitassem o resultado da eleição passada. Em outras palavras, tratava-se de lembrar que este país não é uma republiqueta de bananas.

Lida friamente, a ordem do general Tomás é uma reafirmação de que a vida castrense em nada toca a política, própria da vida civil. São como água e óleo. O documento, pois, não passa de uma compilação de determinações que seriam desnecessárias e soariam apenas como as platitudes que são não fosse o momento delicado por que passam as Forças Armadas, em especial o Exército, como decorrência da ligação antirrepublicana de alguns militares, inclusive da ativa, ao bolsonarismo e das graves suspeitas que recaem sobre eles na preparação e execução dos atos golpistas do 8 de Janeiro e no suposto esquema de venda ilegal de joias da União no exterior.

Porém, justamente pelo desassombro com que se comportaram esses maus militares que, em nome de um desqualificado como Bolsonaro, expuseram a risco não só suas biografias, como a reputação institucional das Forças Armadas, certas obviedades precisam ser ditas – e, sobretudo, por quem as têm dito.

Há poucos dias, durante um seminário promovido pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara sobre os limites constitucionais à atuação dos militares, o general da reserva Sérgio Etchegoyen se uniu ao comandante do Exército na defesa do afastamento de servidores de carreiras de Estado, inclusive militares, caso queiram participar de eleições. De fato, as coisas não se misturam, pois não pode haver uma névoa de suspeição sobre quem exerce funções típicas de Estado de que suas motivações funcionais possam ser outras além do interesse público.

A sociedade só perde a confiança nas instituições quando os cidadãos percebem que seus membros se desvirtuam de seus desígnios originários. Logo, o resgate dessa confiança passa, necessariamente, pelo retorno dessas instituições aos trilhos das leis e da Constituição. Nada há de mistério.

O desenvolvimento virá da educação

O Estado de S. Paulo

Não há solução para a desigualdade inter-regional que não passe pela melhora da qualidade da educação pública. A negligência com a formação de milhões de crianças e adolescentes é imoral

A disparidade entre os indicadores econômicos e sociais da Região Nordeste em relação aos das demais regiões do País voltou ao debate público nacional a partir da entrevista que o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo) , concedeu ao Estadão há alguns dias. Naquela ocasião, o governador mineiro defendeu a criação de um consórcio dos Estados do Sul e do Sudeste à semelhança do Consórcio Nordeste, formado em 2019, o que foi entendido por outros governadores como uma incitação à guerra entre os entes federativos. Este jornal já se manifestou sobre a entrevista (ver editorial O País é um só, 8/8/2023).

Disputas políticas à parte, pois tanto defensores como detratores da ideia de um eventual Consórcio Sul-Sudeste, por óbvio, tiraram proveito das declarações do sr. Zema para fixar suas posições e angariar apoios, fato é que a entrevista lançou luz sobre uma questão importantíssima que a sociedade não pode simplesmente ignorar: afinal, como reduzir a incontestável desigualdade inter-regional no País e, assim, fazer valer o imperativo republicano que iluminou toda a redação da Constituição de 1988?

Há muito tempo, este jornal defende, com um misto de tenacidade e entusiasmo, que o desenvolvimento do Brasil e, como decorrência natural, a melhora das condições de vida para seus 210 milhões de habitantes virão da elevação da oferta de educação pública de qualidade para todos os brasileiros em idade escolar à condição de prioridade nacional número um. Não como uma escolha retórica, um consenso que hoje é tão banal quanto improdutivo, mas como um real esforço conjunto do Estado e da sociedade para fomentar políticas públicas muito bem pensadas, implementadas e, principalmente, bem medidas.

Em entrevista a este jornal, no dia 16 passado, o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega foi preciso na avaliação segundo a qual políticas de qualidade na área de educação podem ser mais determinantes para o desenvolvimento do Nordeste do que os repasses da União aos Estados e municípios da região. O economista, evidentemente, não diminuiu a importância dessas transferências, sejam as obrigatórias por imposição constitucional, sejam as voluntárias, negociadas entre os Estados e o governo central. O ponto fundamental, como bem destacou o entrevistado, é que os repasses federativos e a arrecadação não têm, por si sós, o condão de desenvolver lugar algum. O que muda a realidade de uma cidade, de um Estado ou de um país é o tipo de educação que os cidadãos recebem.

A negligência com a formação de milhões de crianças e adolescentes brasileiros, se não é o principal fator que explica a distância abissal que separa o Brasil de suas potencialidades de desenvolvimento humano, é uma das principais razões para que o País se mantenha cronicamente aferrado ao atraso. Esse descuido com o que há de mais precioso para qualquer nação chega a ser imoral, pois, se não faltam recursos financeiros nem tampouco diagnósticos e propostas para uma transformação virtuosa da educação pública brasileira, essa miséria formativa que grassa País afora, salvo poucas ilhas de excelência, só pode ser fruto de uma escolha deliberada por hipotecar o futuro dessas gerações.

O País destina à educação recursos equivalentes a 6,3% do PIB, um porcentual acima da média dos países que integram a OCDE (5,8%). E, mesmo assim, está onde está, figurando em posições muito aquém do esperado para esse volume de dinheiro investido em quase todos os rankings de avaliação da qualidade da educação básica em nível global.

Em muitas áreas, o País claudica na formulação de políticas públicas baseada em evidências. Isso é particularmente desastroso na área de educação. “O Brasil tem uma cultura muito grande do achismo”, disse ao jornal Valor o professor Mozart Ramos, uma referência em educação no País. Já passou muito da hora de os governos das três esferas, ao invés de tratar da educação na base da tentativa e erro, construírem soluções definitivas para suas mazelas crônicas, condição indispensável para alçar o País ao patamar das nações desenvolvidas.

A volta do espírito cívico

O Estado de S. Paulo

A prometida despolitização do Sete de Setembro é crucial para o resgate da data nacional

O Sete de Setembro deste ano traz a possibilidade de recuperação dos espíritos cívico e de união nacional nas celebrações da principal data da cidadania brasileira. A diretriz de despolitização das celebrações, corretamente ditada pelo Palácio do Planalto para o desfile em Brasília, retoma a importância institucional da festa da Independência e a obrigação governamental de mantê-la a salvo da persistente polarização ideológica do País. Sobretudo, traz a oportunidade ímpar de o Brasil superar a infame usurpação da data ao longo da gestão de Jair Bolsonaro, que a consagrou à sua liderança pessoal, à ruptura do Estado Democrático de Direito e à divisão dos brasileiros.

Voltar à celebração puramente cívica dos anos de confirmação e aprofundamento do marco democrático da Nação fará bem a todos – inclusive aos que comungam dos mais equivocados ideais alimentados pelo bolsonarismo, mesmo que ainda não se apercebam dos benefícios. Infelizmente, no ano passado, justo na festa dedicada aos 200 anos da Independência, não houve o mínimo respeito à nacionalidade e à soberania unas e indivisíveis construídas a partir de 1822. O simbolismo do Sete de Setembro de 2022 perdeu-se em arroubos demagógicos.

Espera-se que neste ano e para sempre, não só em Brasília, como em cada Estado e município, as atitudes vexatórias e indignas de Bolsonaro na data maior da Nação não venham a se repetir. Por mais aviltantes que essas atitudes tenham sido, faz-se necessário recordar sua impostura no Sete de Setembro passado ao pedir votos, atacar seus adversários, criticar falsamente o sistema eleitoral e, para coroar a infâmia, fazer praça de sua potência sexual. Nunca antes um chefe de Estado e de governo desonrou e degradou a Nação como Bolsonaro naquele dia.

Há expectativas igualmente de comportamento pacífico, solidário e patriótico dos brasileiros durante as celebrações deste ano, de modo a completar a restauração da integridade do Sete de Setembro. Certamente, haverá manifestações públicas paralelas, como a do Grito dos Excluídos, que desde a década de 1990 congrega movimentos civis organizados em torno de demandas por justiça social. O que se espera é que não acirrem o conflito político latente. Não surpreenderá, entretanto, a presença de grupos de distintas facções político-ideológicas dispostas a reduzir o momento de congraçamento nacional por meio de gritos de guerra fratricida. Seria, porém, lamentável.

Honrar a Independência é direito de todo o cidadão, assim como o de celebrar a festa nacional conforme seu sentido mais profundo: o de invenção do que se chama comumente de brasilidade. Paz, harmonia, respeito, segurança e despolitização são requisitos mínimos a serem garantidos pelas três esferas de governo, em consonância com a Constituição, neste Sete de Setembro e nas demais datas cívicas. Depois de quatro anos de vergonha e afronta aos valores mais caros do País, o Brasil merece o resgate, no mais alto nível, de sua festa como Nação.

O dólar em apuros

Correio Braziliense

Entre as pautas da reunião do Brics, os líderes de Estado debate a possibilidade de a moeda norte-americana deixar de ser referência no comércio exterior, o que tem tirado o sono de executivos em Wall Street

Padrão para as negociações internacionais desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o dólar enquanto moeda referência no comércio exterior pode estar com os dias contados. O início do enterro deve ser na África do Sul, onde, após três anos sem ocorrer presencialmente, por causa da pandemia da covid-19, a Cúpula dos Brics se reúne desde ontem.

Composto por Brasil, Rússia, Índia e China, além da própria África do Sul, o bloco representa cerca de 42% da população da Terra, quase 30% do território do planeta e controla 27% do PIB mundial, ou seja: força suficiente para direcionar a economia global e se posicionar como um contraponto ao G7, que reúne as nações mais ricas — ainda que o presidente Lula, que volta ao encontro após 13 anos, tenha negado ser esse o objetivo do grupo.

Por isso, o mundo acompanha com atenção os desdobramentos da reunião entre Lula, o chinês Xi Jinping, o indiano Narendra Modi e o sul-africano Cyril Ramaphosa. Ausência presencial, por causa da guerra contra a Ucrânia, o presidente russo Vladimir Putin participa de modo remoto. Entre as pautas do quinteto, está justamente a mudança que tem tirado o sono de executivos em Wall Street: o dólar deixar de ser usado como referência entre países em trocas bilaterais.

Um dos principais incentivadores da medida é, justamente o presidente Lula. Desde o início do ano, ele vem defendendo que países usem suas próprias moedas para suas relações. Ontem, voltou à carga, ao defender a adoção do yuan chinês no comércio entre Brasil e Argentina: "Para vender para o Brasil, não deveria precisar de dólar. Vamos trocar nossas moedas, e os Bancos Centrais fazem os acertos no final do mês. A gente não pode depender de um único país que tem o dólar, de um único país que bota mais dinheiro para rodar dólar e nós somos obrigados a ficar vivendo da flutuação dessa moeda. Não é correto", disse o presidente em Joanesburgo, cidade mais populosa da África do Sul, onde a cúpula do Brics está reunida.

A mudança causaria um impacto significativo no comércio global. Uma das principais vantagens seria a proteção de flutuações na política monetária dos Estados Unidos, que podem desencadear ondas de choque econômico em nações que têm o dólar como âncora. Exemplos recentes, como a crise financeira global de 2008 e a atual alta da inflação, que tem sido um dos desafios do Federal Reserve, o banco central norte-americano, demonstram como as ações internas dos Estados Unidos podem reverberar mundialmente.

Diversificar as moedas utilizadas no comércio internacional ajudaria a reduzir sensivelmente esses riscos sistêmicos, permitindo que as transações bilaterais fossem feitas tanto nas moedas próprias quanto em qualquer outra que esteja mais estável no momento, com o yuan chinês largando em vantagem. Isso pode impulsionar a estabilidade econômica global, promovendo um ambiente de comércio mais previsível e equitativo.

Naturalmente, a transição para a adoção de moedas nacionais para transações internacionais não será isenta de desafios. Mudanças tão profundas no sistema financeiro global vão demandar uma coordenação entre nações, uma infraestrutura tecnológica aprimorada para facilitar transações e acordos comerciais claros e transparentes. No entanto, os benefícios de longo prazo provavelmente superam os obstáculos iniciais.

É claro que os Estados Unidos não vão assistir a tudo isso de braços cruzados. Mas, imersos nos seus problemas internos, como a citada inflação e a ameaça da volta do controverso Donald Trump ao poder, é possível que o governo de Joe Biden não tenha forças ou paciência para se dedicar à questão, abrindo assim uma janela de oportunidade — que o Brics não vai deixar passar — para que um debate sério sobre a redução da dependência do dólar americano seja feito pelo mundo.

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