Brasil deveria criar distância da China em reunião do Brics
O Globo
Ampliação não pode transformar bloco num
veículo para interesses antiamericanos dos chineses
Com a presença de todos os governantes, com
exceção do russo Vladimir Putin, que não viajou porque corria o risco de ser
preso, a cúpula do Brics —
bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul,
sede do encontro — é marcada pelo debate sobre sua expansão. O plano da China é
atrair novos integrantes para tentar criar um competidor ao G7, formado pelas
maiores economias do Ocidente e pelo Japão. Presente na reunião, o presidente
Luiz Inácio Lula da
Silva precisa manter o equilíbrio para não sucumbir à retórica antiocidental.
Sem dúvida o Brics é uma plataforma útil para o Brasil. Nas relações internacionais, permite uma atuação não alinhada e reforça a posição de liderança regional. Do ponto de vista econômico, aumenta a visibilidade do país por associá-lo a dois motores do PIB global: China e Índia. Para uma potência média e uma economia emergente como a brasileira, o Brics tem relevância.
Em seu discurso nesta terça-feira, o
presidente Lula não desperdiçou a chance de falar das oportunidades de negócios
no Brasil. Citou o PAC, plano do governo para infraestrutura, com ênfase em
rodovias, ferrovias, hidrovias, portos e aeroportos. Disse que a geração de
energia renovável será prioridade, sem se esquecer de mencionar o hidrogênio
verde. Para arrematar, Lula falou que o programa está aberto a todos os
investidores interessados.
Embora a presença no Brics seja
estratégica, é indiscutível que o Brasil tem laços culturais, econômicos e
políticos históricos com o mundo ocidental. Portanto, à medida que a China
tenta aumentar sua área de influência, o desafio é explorar as vantagens
apresentadas pelo bloco, sem se afastar dos valores ligados ao Ocidente que
fundamentam a política externa brasileira.
Hoje, estar no Brics não representa
alinhamento automático com os chineses. Que o diga a Índia, que mantém disputa
territorial com a China. Mas um Brics ampliado colocaria a China em
indiscutível posição de liderança e poderia transformá-lo num veículo para as
ambições antiamericanas dos chineses. Seria um risco para o Brasil. Na África
do Sul, Lula tem a chance de influenciar os critérios e princípios para a
adesão ao bloco nas conversas com o chinês Xi Jinping, o sul-africano Cyril
Ramaphosa e o indiano Narendra Modi (Putin participa por videoconferência).
O pior que pode acontecer para o Brasil é
Lula dar ouvidos à retórica terceiro-mundista de seu assessor Celso Amorim, que
parece acreditar que o Brics pode se tornar alternativa ao G7. A ex-presidente
Dilma Rousseff, atualmente à frente do banco do Brics, também está na África do
Sul. Em encontro realizado em Pequim no início de julho, ela exemplificou até
onde vai o ranço ideológico ao condenar as potências ocidentais pela imposição
de um único modelo de democracia. Só faltou exaltar as “democracias” chinesa ou
russa. Lula fará bem se sempre lembrar os valores inegociáveis da sociedade
brasileira.
STF errou ao permitir que juiz atue em
processo de escritório de familiar
O Globo
Ainda que a regra atual imponha
dificuldades, aumentará suspeita de parcialidade com a nova decisão
O Supremo Tribunal Federal (STF)
cometeu um erro ao formar maioria para derrubar a norma do Código de Processo
Civil que impedia juízes de julgar processos em que estejam envolvidos
escritórios de advocacia onde seus cônjuges ou parentes trabalhem. Ao menos
sete integrantes da Corte têm parentes advogados. Ainda que continue válido o
impedimento do juiz nos processos em que um familiar atue diretamente, a
flexibilização arranha a credibilidade da Corte, pois beneficia as famílias dos
próprios ministros.
O exame da questão foi motivado por uma
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida pela Associação de
Magistrados Brasileiros (AMB) em 2018. Para a AMB, havia um problema no
dispositivo que impedia o juiz de julgar “cliente do escritório de advocacia de
seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou
colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado
de outro escritório”. Segundo a entidade, não havia como pôr a norma em prática
quando a ação era movida por advogado de outra banca. O juiz, ainda de acordo
com a associação, não tinha como saber se uma das partes em uma ação era
cliente de um parente seu noutras demandas na Justiça.
Em vez de sugerir mecanismos para melhorar
a transparência nos casos obscuros, a opção de sete dos 11 ministros do STF foi
acabar com o impedimento em todos os casos. Há três anos, quando a discussão
sobre o tema começou, o ministro Edson Fachin, relator do processo, foi
certeiro ao citar o Código Mundial de Conduta de Magistrados, segundo o qual um
juiz deve se considerar impedido quando estiver em jogo o interesse econômico
de alguém de sua família. Fachin lembrou, com razão, que o ganho muitas vezes
pode ser indireto. A Advocacia-Geral da União e Procuradoria-Geral da República
também declararam ser a favor da manutenção do impedimento em sua formulação
mais ampla.
A tese que prevaleceu foi a do ministro
Gilmar Mendes, primeiro a votar contra a norma. Gilmar argumentou que o
impedimento dava às partes a possibilidade de definir quem julgaria a causa. A
hipótese é que escritórios com grande poder econômico contratam parentes
daqueles juízes que gostariam de evitar. Os ministros Dias Toffoli, Luiz Fux,
Alexandre de Moraes, Nunes Marques, André Mendonça e Cristiano Zanin
acompanharam o entendimento de Gilmar. O ministro Luís Roberto Barroso e as
ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia concordaram com Fachin, mas saíram
vencidos.
Escritórios de advocacia contam agora com
mais incentivos para contratar familiares de juízes. Mesmo que não atuem
diretamente nas ações, muitos têm acesso privilegiado aos magistrados em
encontros informais. Independentemente da isenção de cada juiz, a suspeita de
parcialidade das decisões aumentará. Perde a Justiça, perde o país.
Crescimento e emprego driblam aperto
monetário
Valor Econômico
Quase nenhum dos riscos associados a um
aumento dos juros se materializou
Por mais distintas que sejam as formas de
atuar dos bancos centrais, a força da inflação que estão tentando debelar e as
estruturas das economias nacionais, há uma enigmática coincidência nas reações
ao aperto das políticas monetárias. O desemprego nos Estados Unidos, na Europa
e no Brasil não aumentou, e até atingiu o menor nível em décadas. Os índices de
preços ao consumidor caíram, mas com uma lentidão que contrasta com a rapidez e
força da alta dos juros. O crescimento foi afetado, mas não tanto quanto se
temia. A economia americana avança mais do que o previsto, enquanto que a do
Brasil desacelera menos que o esperado. A segunda maior economia do mundo, a
China, por seu lado, perde preocupantemente ritmo sem que os juros tenham
aumentado - ao contrário, o BC chinês está empenhado em reduzi-los.
EUA e China estão puxando a economia global
em direções contrárias. Ainda que o índice de inflação em ambos esteja caindo,
essa queda é muito mais lenta na maior economia do mundo, enquanto que a
segunda já exibe deflação. Os EUA voltam a crescer no terceiro trimestre,
contra todas as expectativas, enquanto que a robusto expansão do PIB chinês
esperada após a pandemia não está se confirmando, a ponto de que a meta de 5,5%
para o PIB este ano corre riscos sérios de não ser atingida. A zona do euro
ficou no meio do caminho: não vai crescer muito, mas parece ter escapado de uma
recessão que a princípio parecia ser severa. Nenhum país emergente relevante
entrou em retração profunda.
Curiosamente, quase nenhum dos riscos
associados a um aumento dos juros nas principais economias e nas emergentes se
materializou. Até o momento, os custos bem maiores do financiamento externo não
provocaram nenhum default importante, em que pese a elevação muito rápida do
endividamento dos países emergentes após a crise financeira de 2008 - uma das
consequências mais prováveis do aperto monetário global. Nos países ricos, as
empresas alavancadas de segunda linha, outra frente relevante de potenciais
problemas, não foram sufocadas pela elevação dos juros, mesmo com o alargamento
do spread entre as taxas básicas e as que pagam seus “junk bonds”.
Em julho, o balanço de riscos indicado pelo
Fundo Monetário Internacional continuava pendendo para o lado negativo. Os
fatores que levariam à queda da inflação, como uma recessão severa, decorrente
da política monetária austera, que poderia resultar em “overshooting” ou em
séria crise financeira, especialmente para instituições com exposição ao
mercado imobiliário, não se materializaram no curto prazo. A súbita elevação
dos juros derrubou bancos regionais americanos e o Credit Suisse, mas seus
efeitos não se generalizaram. Outro risco assinalado, uma frustrante
recuperação chinesa, continua no ar mas, mesmo assim, a pior expectativa de
expansão não fica abaixo de 4%, o que está longe de ser um desastre.
Os fatores negativos apontados pelo FMI
tampouco se confirmaram plenamente. A inflação ainda está longe de se aproximar
das metas na Europa, Estados Unidos e Brasil, mas recuou bastante, sem que
isso, no entanto, permita aos BCs afirmarem com segurança que a batalha foi
ganha. Uma condição para o amortecimento das tensões inflacionárias seria um
aumento do desemprego que induzisse a uma guinada posterior de baixa de juros,
mas isso não aconteceu. O desemprego é o mais baixo em 50 anos nos EUA, Europa,
e no Brasil está abaixo de todas as expectativas.
A ameaça de estagflação, tida como séria
por muitos analistas, parece hoje menos plausível. A inflação é maior do que
deveria ser, pelos padrões dos sistemas de metas de inflação, mas o crescimento
também, algo que se observa igualmente no Brasil. Por essa razão, outros
analistas preferem acreditar que o que está fora do lugar é a meta de inflação,
que deveria ser maior do que a corrente. A única coisa certa, pelas projeções
dos BCs, é que os índices de preços só estarão próximos dos objetivos no ano
que vem (caso do Brasil) ou em 2025 (Europa e EUA).
Os enormes estímulos fiscais e monetários
dados durante crise de 2008 e, depois, na pandemia, amorteceram a queda no
consumo enquanto os juros negativos impulsionaram a oferta. Entre os dois,
havia uma demanda reprimida de serviços que ainda mantém a inflação acima do
desejável. O desafio dos BCs hoje é saber se é necessário uma dose extra de
aperto ou a manutenção das taxas atuais por mais tempo do que o esperado. Ambas
as receitas derrubarão o consumo, o emprego, o crescimento e a inflação. A
questão mais difícil, porém, é a dosagem do aperto. O BCE e o Fed parecem
contar informalmente com o melhor cenário: pouso suave ou recessão tépida e
breve. No Brasil, o aperto pode levar a mais um par de anos de expansão
medíocre.
Incertezas levam volatilidade aos ativos, em um ambiente carregado de conflitos entre EUA e China. A tarefa da estabilização econômica, após choques sucessivos, não está concluída e há um espaço não desprezível para pioras. Como lembra um economista, “os preços estão subindo menos, não caindo” (Chris Giles, FT).
Imagem abalada
Folha de S. Paulo
Dano à reputação das Forças pode ser
revertido com investigação séria e punições
Em boa hora o general Tomás Paiva mostra-se
preocupado com os rumos da corporação que dirige. Na condição de comandante do
Exército, ele distribuiu uma ordem interna com diversas
medidas destinadas a resgatar o brio dos militares e restabelecer a imagem da
instituição, degradada após os anos de governo Jair Bolsonaro (PL).
Ressaltando a necessidade de o Exército
pautar-se pela legalidade e pela legitimidade, o general lembra que aos
fardados competem direitos e deveres distintos daqueles que se aplicam aos
demais segmentos da sociedade —a qual nem sempre, segundo o raciocínio, toma
conhecimento das ações desenvolvidas pela Força terrestre.
Consta que Tomás pretende atingir dois
alvos com apenas um tiro. No âmbito interno, mira sinais de insatisfação com a
conjuntura política; no externo, aponta para o desgaste provocado pelas graves
acusações que pairam sobre membros das Forças Armadas.
Admita-se a precisão do diagnóstico; há
muito se afirma que a incursão dos militares no campo político deixaria um
rastro de estrago e contaminação mesmo na hipótese, hoje descartada, de que os
artífices da imiscuição tivessem nada menos que as melhores intenções.
Se o quadro é esse, a solução deveria
passar pela despolitização das Forças Armadas, pelo apoio irrestrito a
investigações do sistema judicial e pela tomada de providências concretas no
âmbito administrativo —resguardado sempre o direito ao devido processo legal.
Eis que o comandante faz algo diverso.
Busca formas de aperfeiçoar o sistema de saúde do Exército e elevar o soldo dos
militares, sobretudo daqueles de baixa patente. Propõe, além disso, a criação
de pautas positivas para a instituição.
Alimenta, dessa forma, a conhecida agenda
corporativista das Forças Armadas, apegadas a privilégios injustificáveis e
resistentes à apuração isenta de responsabilidades em todo tipo de malfeito.
Basta ver a leniência das
conclusões no inquérito militar sobre possíveis falhas da caserna durante os
atos golpistas de 8 de janeiro. Ou então o vexaminoso processo
sigiloso que absolveu o general Eduardo Pazuello de participação em atos
político-partidários.
Cumpre recordar, a propósito, o compromisso
assumido pelos chefes das três Forças em reunião com o presidente Luiz Inácio
Lula da Silva (PT) e o ministro José Múcio Monteiro, da Defesa. Na ocasião,
conforme foi relatado, eles se declararam empenhados em garantir a punição de
oficiais envolvidos em atos antidemocráticos.
Se pretendem reparar danos de imagem, não
há melhor meio de começar do que esse.
Do feijão à picanha
Folha de S. Paulo
Isenção tributária da cesta básica deve ser
aperfeiçoada para combater a pobreza
Em meio à miríade de regras especiais e
subsídios questionáveis ou mesmo claramente equivocados instituídos pelo poder
público brasileiro, a isenção de tributos federais para produtos da cesta
básica costuma estar entre as normas tidas como mais acertadas. Nem mesmo ela,
porém, está livre de falhas de concepção e execução.
Segundo cálculos recém-concluídos pelo
Ministério do Planejamento, essa desoneração reduzirá a receita da União em R$
34,7 bilhões neste 2023 —valor suficiente para pagar mais de dois meses de
Bolsa Família. Em contrapartida, o benefício proporciona uma redução média de
5% dos preços das mercadorias afetadas.
O impacto da medida, em vigor há uma
década, não é, portanto, desprezível. Entretanto a boa gestão pública precisa
avaliar se as políticas geram os melhores resultados aos menores custos
possíveis.
No caso em tela, uma primeira questão é que
a isenção de PIS, Cofins e IPI sobre a cesta básica favorece
também o consumo da parcela mais rica da população, às expensas do
conjunto da sociedade.
Tal defeito pode ser relativizado com o
argumento de que os mais abonados destinam à alimentação uma parcela de sua
renda menor que a dos mais pobres. Ainda assim, trata-se de uma renúncia fiscal
com deficiência de foco.
O problema se
agrava porque entre os produtos atingidos estão carnes e peixes mais nobres,
que não fazem parte do cardápio dos estratos propensos à insegurança alimentar
—além de artigos controversos como os ultraprocessados.
Uma alternativa, discutida na tramitação da
reforma tributária, seria reduzir ou eliminar a renúncia tributária e fazer uma
restituição em dinheiro às famílias carentes dos tributos pagos. Embora
meritória, se sua viabilidade for comprovada, a proposta enfrenta o tabu
político da reoneração da cesta.
Nossos governantes e legisladores têm
grande apreço por conceder vantagens e exceções a produtos e setores, aí
incluídos educação, saúde, novas fábricas e exportações, sempre mencionando
nobres intenções. O que em geral se omite é que tais normas especiais implicam
mais impostos a serem pagos pelos demais.
A urgente simplificação do sistema brasileiro exige regras mais uniformes e estáveis —em termos bem simples, se todos pagarem, todos poderão pagar menos. Isso pode ser feito sem prejuízo das políticas fundamentais de combate à pobreza e à desigualdade, cujo desenho precisa ser aperfeiçoado.
Freio de arrumação militar
O Estado de S. Paulo
Malgrado a platitude, ordem do general
Tomás para despolitizar o Exército é muito bem-vinda por relembrar aos
militares seu papel e suas responsabilidades à luz da Constituição
Uma ordem burocrática do comandante do
Exército não despertaria atenção não estivessem as Forças Armadas tão
contaminadas pelo vírus do golpismo inoculado pelo bolsonarismo. Nesse sentido,
é muito bem-vinda a Ordem Fragmentária n.º 1/2023, que o general Tomás Miguel
Ribeiro Paiva fez publicar no Boletim do Exército no dia 18 passado. A ordem
reitera à sociedade o compromisso do comandante de afastar o Exército da
nefasta polarização política, movimento estimulado com esmero por
Jair Bolsonaro desde antes de o mau militar
chegar à Presidência. Passa da hora de virar essa triste página da história
republicana.
É péssimo para o País conviver com suas
Forças Armadas abaladas por uma crise de confiança. É ocioso elaborar a
respeito da centralidade do papel dos militares na defesa do interesse nacional
em múltiplas frentes – sendo a de batalha a mais distante da realidade
brasileira. E esse papel, é evidente, só pode ser bem exercido quando não
pairam dúvidas sobre o Exército, a Marinha e a Aeronáutica quanto à sua
credibilidade institucional e ao profissionalismo de seus integrantes. Noutras
palavras: quando não se observa na atuação dos militares qualquer desvio de
suas atribuições constitucionais.
A crise, contudo, aí está e não há como
negá-la; como também é inescapável a conclusão de que alguns dos responsáveis
pelo desgaste do prestígio das Três Armas perante a sociedade nos últimos anos
envergam ou envergaram a mesma farda que passaram a desonrar por uma escolha
livre e consciente de se afastar dos ditames da Constituição para se imiscuir
na política. Se, por um lado, a ordem do general Tomás nada traz de novo, por
outro, serve como uma espécie de “freio de arrumação”, vale dizer, é um
lembrete à tropa dos papéis e responsabilidades dos militares no Estado
Democrático de Direito à luz da Lei Maior.
No documento, entre outras providências, o
comandante do Exército reafirma que a Força “é uma instituição de Estado,
apartidária, coesa, integrada à sociedade e em permanente estado de prontidão”.
Nada diferente, como se vê, do que diz a Constituição e do que dissera o
próprio general Tomás em janeiro, quando, à frente do Comando Militar do
Sudeste, ordenou que seus subordinados respeitassem o resultado da eleição
passada. Em outras palavras, tratava-se de lembrar que este país não é uma
republiqueta de bananas.
Lida friamente, a ordem do general Tomás é
uma reafirmação de que a vida castrense em nada toca a política, própria da
vida civil. São como água e óleo. O documento, pois, não passa de uma
compilação de determinações que seriam desnecessárias e soariam apenas como as
platitudes que são não fosse o momento delicado por que passam as Forças
Armadas, em especial o Exército, como decorrência da ligação antirrepublicana
de alguns militares, inclusive da ativa, ao bolsonarismo e das graves suspeitas
que recaem sobre eles na preparação e execução dos atos golpistas do 8 de
Janeiro e no suposto esquema de venda ilegal de joias da União no exterior.
Porém, justamente pelo desassombro com que
se comportaram esses maus militares que, em nome de um desqualificado como
Bolsonaro, expuseram a risco não só suas biografias, como a reputação
institucional das Forças Armadas, certas obviedades precisam ser ditas – e,
sobretudo, por quem as têm dito.
Há poucos dias, durante um seminário
promovido pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara sobre os limites
constitucionais à atuação dos militares, o general da reserva Sérgio Etchegoyen
se uniu ao comandante do Exército na defesa do afastamento de servidores de
carreiras de Estado, inclusive militares, caso queiram participar de eleições.
De fato, as coisas não se misturam, pois não pode haver uma névoa de suspeição
sobre quem exerce funções típicas de Estado de que suas motivações funcionais
possam ser outras além do interesse público.
A sociedade só perde a confiança nas
instituições quando os cidadãos percebem que seus membros se desvirtuam de seus
desígnios originários. Logo, o resgate dessa confiança passa, necessariamente,
pelo retorno dessas instituições aos trilhos das leis e da Constituição. Nada
há de mistério.
O desenvolvimento virá da educação
O Estado de S. Paulo
Não há solução para a desigualdade
inter-regional que não passe pela melhora da qualidade da educação pública. A
negligência com a formação de milhões de crianças e adolescentes é imoral
A disparidade entre os indicadores
econômicos e sociais da Região Nordeste em relação aos das demais regiões do
País voltou ao debate público nacional a partir da entrevista que o governador
de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo) , concedeu ao Estadão há alguns dias.
Naquela ocasião, o governador mineiro defendeu a criação de um consórcio dos
Estados do Sul e do Sudeste à semelhança do Consórcio Nordeste, formado em
2019, o que foi entendido por outros governadores como uma incitação à guerra
entre os entes federativos. Este jornal já se manifestou sobre a entrevista
(ver editorial O País é um só, 8/8/2023).
Disputas políticas à parte, pois tanto
defensores como detratores da ideia de um eventual Consórcio Sul-Sudeste, por
óbvio, tiraram proveito das declarações do sr. Zema para fixar suas posições e
angariar apoios, fato é que a entrevista lançou luz sobre uma questão
importantíssima que a sociedade não pode simplesmente ignorar: afinal, como
reduzir a incontestável desigualdade inter-regional no País e, assim, fazer
valer o imperativo republicano que iluminou toda a redação da Constituição de
1988?
Há muito tempo, este jornal defende, com um
misto de tenacidade e entusiasmo, que o desenvolvimento do Brasil e, como
decorrência natural, a melhora das condições de vida para seus 210 milhões de
habitantes virão da elevação da oferta de educação pública de qualidade para
todos os brasileiros em idade escolar à condição de prioridade nacional número
um. Não como uma escolha retórica, um consenso que hoje é tão banal quanto
improdutivo, mas como um real esforço conjunto do Estado e da sociedade para
fomentar políticas públicas muito bem pensadas, implementadas e, principalmente,
bem medidas.
Em entrevista a este jornal, no dia 16
passado, o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega foi preciso na avaliação
segundo a qual políticas de qualidade na área de educação podem ser mais
determinantes para o desenvolvimento do Nordeste do que os repasses da União
aos Estados e municípios da região. O economista, evidentemente, não diminuiu a
importância dessas transferências, sejam as obrigatórias por imposição
constitucional, sejam as voluntárias, negociadas entre os Estados e o governo
central. O ponto fundamental, como bem destacou o entrevistado, é que os
repasses federativos e a arrecadação não têm, por si sós, o condão de
desenvolver lugar algum. O que muda a realidade de uma cidade, de um Estado ou
de um país é o tipo de educação que os cidadãos recebem.
A negligência com a formação de milhões de
crianças e adolescentes brasileiros, se não é o principal fator que explica a
distância abissal que separa o Brasil de suas potencialidades de
desenvolvimento humano, é uma das principais razões para que o País se mantenha
cronicamente aferrado ao atraso. Esse descuido com o que há de mais precioso
para qualquer nação chega a ser imoral, pois, se não faltam recursos
financeiros nem tampouco diagnósticos e propostas para uma transformação
virtuosa da educação pública brasileira, essa miséria formativa que grassa País
afora, salvo poucas ilhas de excelência, só pode ser fruto de uma escolha
deliberada por hipotecar o futuro dessas gerações.
O País destina à educação recursos
equivalentes a 6,3% do PIB, um porcentual acima da média dos países que
integram a OCDE (5,8%). E, mesmo assim, está onde está, figurando em posições
muito aquém do esperado para esse volume de dinheiro investido em quase todos
os rankings de avaliação da qualidade da educação básica em nível global.
Em muitas áreas, o País claudica na
formulação de políticas públicas baseada em evidências. Isso é particularmente
desastroso na área de educação. “O Brasil tem uma cultura muito grande do
achismo”, disse ao jornal Valor o professor Mozart Ramos, uma referência em
educação no País. Já passou muito da hora de os governos das três esferas, ao
invés de tratar da educação na base da tentativa e erro, construírem soluções
definitivas para suas mazelas crônicas, condição indispensável para alçar o
País ao patamar das nações desenvolvidas.
A volta do espírito cívico
O Estado de S. Paulo
A prometida despolitização do Sete de
Setembro é crucial para o resgate da data nacional
O Sete de Setembro deste ano traz a
possibilidade de recuperação dos espíritos cívico e de união nacional nas
celebrações da principal data da cidadania brasileira. A diretriz de
despolitização das celebrações, corretamente ditada pelo Palácio do Planalto
para o desfile em Brasília, retoma a importância institucional da festa da
Independência e a obrigação governamental de mantê-la a salvo da persistente
polarização ideológica do País. Sobretudo, traz a oportunidade ímpar de o
Brasil superar a infame usurpação da data ao longo da gestão de Jair Bolsonaro,
que a consagrou à sua liderança pessoal, à ruptura do Estado Democrático de
Direito e à divisão dos brasileiros.
Voltar à celebração puramente cívica dos
anos de confirmação e aprofundamento do marco democrático da Nação fará bem a
todos – inclusive aos que comungam dos mais equivocados ideais alimentados pelo
bolsonarismo, mesmo que ainda não se apercebam dos benefícios. Infelizmente, no
ano passado, justo na festa dedicada aos 200 anos da Independência, não houve o
mínimo respeito à nacionalidade e à soberania unas e indivisíveis construídas a
partir de 1822. O simbolismo do Sete de Setembro de 2022 perdeu-se em arroubos
demagógicos.
Espera-se que neste ano e para sempre, não
só em Brasília, como em cada Estado e município, as atitudes vexatórias e
indignas de Bolsonaro na data maior da Nação não venham a se repetir. Por mais
aviltantes que essas atitudes tenham sido, faz-se necessário recordar sua
impostura no Sete de Setembro passado ao pedir votos, atacar seus adversários,
criticar falsamente o sistema eleitoral e, para coroar a infâmia, fazer praça
de sua potência sexual. Nunca antes um chefe de Estado e de governo desonrou e
degradou a Nação como Bolsonaro naquele dia.
Há expectativas igualmente de comportamento
pacífico, solidário e patriótico dos brasileiros durante as celebrações deste
ano, de modo a completar a restauração da integridade do Sete de Setembro.
Certamente, haverá manifestações públicas paralelas, como a do Grito dos
Excluídos, que desde a década de 1990 congrega movimentos civis organizados em
torno de demandas por justiça social. O que se espera é que não acirrem o
conflito político latente. Não surpreenderá, entretanto, a presença de grupos
de distintas facções político-ideológicas dispostas a reduzir o momento de
congraçamento nacional por meio de gritos de guerra fratricida. Seria, porém,
lamentável.
Honrar a Independência é direito de todo o cidadão, assim como o de celebrar a festa nacional conforme seu sentido mais profundo: o de invenção do que se chama comumente de brasilidade. Paz, harmonia, respeito, segurança e despolitização são requisitos mínimos a serem garantidos pelas três esferas de governo, em consonância com a Constituição, neste Sete de Setembro e nas demais datas cívicas. Depois de quatro anos de vergonha e afronta aos valores mais caros do País, o Brasil merece o resgate, no mais alto nível, de sua festa como Nação.
O dólar em apuros
Correio Braziliense
Entre as pautas da reunião do Brics, os
líderes de Estado debate a possibilidade de a moeda norte-americana deixar de
ser referência no comércio exterior, o que tem tirado o sono de executivos em
Wall Street
Padrão para as negociações internacionais
desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o dólar enquanto moeda referência no
comércio exterior pode estar com os dias contados. O início do enterro deve ser
na África do Sul, onde, após três anos sem ocorrer presencialmente, por causa
da pandemia da covid-19, a Cúpula dos Brics se reúne desde ontem.
Composto por Brasil, Rússia, Índia e China,
além da própria África do Sul, o bloco representa cerca de 42% da população da
Terra, quase 30% do território do planeta e controla 27% do PIB mundial, ou
seja: força suficiente para direcionar a economia global e se posicionar como
um contraponto ao G7, que reúne as nações mais ricas — ainda que o presidente
Lula, que volta ao encontro após 13 anos, tenha negado ser esse o objetivo do
grupo.
Por isso, o mundo acompanha com atenção os
desdobramentos da reunião entre Lula, o chinês Xi Jinping, o indiano Narendra
Modi e o sul-africano Cyril Ramaphosa. Ausência presencial, por causa da guerra
contra a Ucrânia, o presidente russo Vladimir Putin participa de modo remoto.
Entre as pautas do quinteto, está justamente a mudança que tem tirado o sono de
executivos em Wall Street: o dólar deixar de ser usado como referência entre
países em trocas bilaterais.
Um dos principais incentivadores da medida
é, justamente o presidente Lula. Desde o início do ano, ele vem defendendo que
países usem suas próprias moedas para suas relações. Ontem, voltou à carga, ao
defender a adoção do yuan chinês no comércio entre Brasil e Argentina:
"Para vender para o Brasil, não deveria precisar de dólar. Vamos trocar
nossas moedas, e os Bancos Centrais fazem os acertos no final do mês. A gente
não pode depender de um único país que tem o dólar, de um único país que bota
mais dinheiro para rodar dólar e nós somos obrigados a ficar vivendo da
flutuação dessa moeda. Não é correto", disse o presidente em Joanesburgo,
cidade mais populosa da África do Sul, onde a cúpula do Brics está reunida.
A mudança causaria um impacto significativo
no comércio global. Uma das principais vantagens seria a proteção de flutuações
na política monetária dos Estados Unidos, que podem desencadear ondas de choque
econômico em nações que têm o dólar como âncora. Exemplos recentes, como a
crise financeira global de 2008 e a atual alta da inflação, que tem sido um dos
desafios do Federal Reserve, o banco central norte-americano, demonstram como
as ações internas dos Estados Unidos podem reverberar mundialmente.
Diversificar as moedas utilizadas no
comércio internacional ajudaria a reduzir sensivelmente esses riscos
sistêmicos, permitindo que as transações bilaterais fossem feitas tanto nas
moedas próprias quanto em qualquer outra que esteja mais estável no momento,
com o yuan chinês largando em vantagem. Isso pode impulsionar a estabilidade
econômica global, promovendo um ambiente de comércio mais previsível e
equitativo.
Naturalmente, a transição para a adoção de
moedas nacionais para transações internacionais não será isenta de desafios.
Mudanças tão profundas no sistema financeiro global vão demandar uma
coordenação entre nações, uma infraestrutura tecnológica aprimorada para
facilitar transações e acordos comerciais claros e transparentes. No entanto,
os benefícios de longo prazo provavelmente superam os obstáculos iniciais.
É claro que os Estados Unidos não vão assistir a tudo isso de braços cruzados. Mas, imersos nos seus problemas internos, como a citada inflação e a ameaça da volta do controverso Donald Trump ao poder, é possível que o governo de Joe Biden não tenha forças ou paciência para se dedicar à questão, abrindo assim uma janela de oportunidade — que o Brics não vai deixar passar — para que um debate sério sobre a redução da dependência do dólar americano seja feito pelo mundo.
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