segunda-feira, 7 de agosto de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Cúpula deve ampliar combate à destruição da Amazônia

Valor Econômico

É importante que a integração ganhe ímpeto e bons propósitos se consumem em políticas eficazes

Da preservação da Amazônia, a maior floresta tropical do mundo, depende o sucesso ou fracasso das iniciativas contra o aquecimento global. A Cúpula da Amazônia, que reunirá está semana os 8 países por onde ela se espraia (Brasil, Peru, Equador, Venezuela, Colômbia, Bolívia, Guiana e Suriname), traz a promessa de mudar o jogo contra o desmatamento e, com políticas adequadas, zerá-lo até 2030. Esse é um dos resultados possíveis do encontro da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), o primeiro desde 2009.

O governo brasileiro tem interesse na aprovação de medidas urgentes para conter a destruição acelerada da floresta, que encontrou seu auge recente no governo de Jair Bolsonaro. Belém, a capital de um dos Estados que mais desmatam no país, sediará a cúpula, assim como a COP30, em 2025. Politicamente, o governo Lula quer garantir uma posição internacional de destaque realizando um continuum de ações em um calendário no qual o país assume em breve a Presidência do G-20 e termina abrigando o encontro global anual sobre o clima daqui a dois anos.

Buscar uma coordenação de ações entre os países que hospedam a floresta é a coisa certa a fazer. A OTCA, há 13 anos sem se reunir, tem sido um daqueles órgãos que parecem continuar existindo por inércia. Boa parte da inação reflete o relacionamento exíguo entre seus membros, sempre às voltas com mazelas políticas que os tornam mais distantes entre si do que sugere a proximidade pela presença comum de uma vegetação exuberante. A união em torno de propostas comuns é fundamental diante da magnitude da ameaça. Ao Brasil, porém, cabe o protagonismo: 75% da área desmatada no bioma está no país, que abriga 59% do território da floresta. Segundo o MapBiomas, 109,6 milhões de hectares, ou 21% da Amazônia brasileira, foram destruídos até agora.

A troca de governo pôs um fim à devastação acelerada. Os alertas de desmatamento caíram 42,5% de janeiro a julho deste ano, com o retorno de políticas robustas de combate ao desmate. Seu sucesso, porém, não foi completo. A destruição do Cerrado, a mais biodiversa savana do mundo, segundo Ana Crisostomo, da WWF, aumentou 21,7%. Resta pouco mais da metade da vegetação nativa no bioma.

O esforço que deve nortear os governos tem na orientação de diversas ONGs ambientais um norte seguro de ação. O objetivo deve ser impedir a todo custo o ponto de não retorno da Amazônia, quando, pela magnitude do desmatamento, a floresta perderá sua capacidade de absorver carbono e se tornará, ao contrário, um emissor líquido, o que já foi detectado nas zonas mais atingidas pelos cortes de árvores.

A derrubada da floresta é expressiva a ponto de tornar o não retorno uma ameaça real e iminente. Segundo Luciana Gatti, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 15% da Amazônia transnacional já foi desmatada e 21% da porção brasileira da floresta - 10 mil km2 - deixam de existir a cada ano. As motoserras ceifaram 230 mil km2 no Nordeste da floresta e 600 mil km2 no Sudeste. De acordo com a pesquisadora, a plantação de soja no bioma cresceu 70% nos últimos anos e a de milho, 60%. O rebanho bovino aumentou na região, enquanto diminuiu no resto do país (Valor, 3 de agosto). “A Floresta Nacional do Tapajós está ilhada por soja. Isso tem que parar”, diz ela.

Evitar a degeneração das condições naturais dos biomas é a principal tarefa brasileira. Ao contrário da maioria dos países desenvolvidos, a grande fonte de emissões de gases de efeito estufa não é a produção de energia, nem a poluição industrial e dos transportes, mas as alterações no uso do solo. Isso exige um trabalho gigantesco em um país continental, recentemente vítima da aniquilação de políticas ambientais pelo governo Bolsonaro.

Na Amazônia, há uma vasta conspiração contra a natureza, e enfrentá-la envolve coordenação de todos os países vizinhos. A devastação da floresta une vários tipos de ações criminosas que potencializam a exterminação ambiental. Madeireiras ilegais e grileiros são a face mais visível, em torno dos quais se disseminam garimpos e, mais recentemente, de forma avassaladora, o crime organizado e seu bilionário tráfico de drogas. Ameaças às comunidades indígenas e trabalho escravo são o resultado direto do domínio do banditismo na região.

Nesse sentido, a cúpula tem a oportunidade de forjar uma união das polícias para o combate conjunto à criminalidade - uma “Interpol amazônica”. Arquitetar projetos econômicos de sustentação das populações nativas e de infraestrutura não agressiva ao ambiente é outra missão que pede iniciativas transnacionais.

Mais de 50 organizações sociais vão propor que a OTCA assuma o desmatamento zero até 2030, o que não é um consenso entre países. Os riscos de exploração de petróleo na região também divide governos como o da Colômbia, contra a iniciativa, e do Brasil, que é favorável a ela. Divergências à parte, é importante que a integração ganhe ímpeto e bons propósitos se consumem em políticas eficazes.

Escola em tempo integral deve ser prioridade

O Globo

Lula sancionou avanço que impõe urgência na implementação da reforma do Ensino Médio

Num instantâneo da educação pública brasileira, há problemas sérios. Se analisarmos o filme ao longo de 25 anos, porém, é inegável que, desde a redemocratização, a atuação conjunta de diversos governos federais, estaduais e municipais, com apoio de organizações da sociedade, tem melhorado o ensino, tornando-o mais atraente e produtivo para crianças e jovens. Embora ainda haja muito a fazer, na semana passada foi dado um passo importante na melhoria da escola pública com a sanção, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, da lei do Programa Escola em Tempo Integral.

Como qualquer mudança na área educacional envolvendo toda a Federação, será um desafio para Estado e sociedade estender como norma o ensino de cinco para oito horas diárias, num único turno. Hoje, apenas 18% dos alunos em 27% das escolas públicas estão submetidos a esse regime.

As experiências em curso mostram não só a importância de conceder mais horas ao ensino, mas também as dificuldades de implementação. Como lembrou o colunista do GLOBO Antônio Gois: “No cenário ideal, 100% de nossas crianças e jovens deveriam estudar sem preocupação de complementar a renda familiar ou com o cuidado de familiares”. A realidade é bem outra. A necessidade de trabalhar é a explicação dada por 52% dos homens para o abandono da escola, segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do IBGE. Para 33% das mulheres, destacavam-se entre as razões do trancamento de matrícula a gravidez e também a necessidade de trabalhar.

A partir da nova lei, o ensino em tempo integral deixa de depender da sensibilidade de governadores e prefeitos. O governo federal, por intermédio do MEC, passará a oferecer recursos para a ampliação da carga horária e a dar apoio técnico aos secretários de Educação.

Uma das expectativas é que caia o elevado índice de evasão no ensino médio. De acordo com as últimas informações disponíveis, relativas a 2020, a taxa de abandono escolar foi de 1,5% e 3,1%, respectivamente, nos ensinos fundamental 1 e 2. No ensino médio, chegou a 6,9% (e a 8,2% no primeiro ano do ciclo). Para efeito de comparação, em 2008 os índices eram de 3,2% e 7,2% no fundamental 1 e 2 e de 14,2% no ensino médio. Melhorou, mas ainda é pouco.

No campo pedagógico, espera-se que a reforma do ensino médio, cuja implantação foi suspensa pelo governo, consiga, com a flexibilização, atrair os jovens para o turno integral, inclusive aqueles que desejam um curso técnico profissionalizante.

Com o ensino em tempo integral, será preciso que os governos federal, estaduais e municipais criem bolsas para alunos do Novo Ensino Médio, como já existem em estados como Alagoas. É a única maneira de permitir ao jovem que precisa trabalhar que estude, complete o ensino médio e possa entrar na universidade.

É difícil executar uma política educacional eficiente em um país de dimensões continentais com enormes desigualdades sociais. Exemplos internacionais de sucesso têm eficácia limitada. “Se trouxerem para o Brasil uma escola da Finlândia, ela não vai funcionar”, diz um especialista em educação. Precisamos encontrar nosso caminho, e a escola em tempo integral é um passo no rumo certo.

Efeitos das mudanças climáticas na saúde exigem atenção dos cientistas

O Globo

Doenças outrora restritas a regiões tropicais, como a dengue, já se espalham para áreas temperadas

Os efeitos do aquecimento global não se esgotam na alta do nível do mar, nos danos à agricultura, nas ondas de calor, enchentes e outros eventos climáticos extremos. Também no campo da medicina o clima terá impacto. Os cientistas alertam sobre o avanço de doenças típicas de regiões mais quentes que começam a se alastrar por todo o planeta à medida que as temperaturas sobem. É o caso da dengue e de outras doenças classificadas como arboviroses — como zika ou chicungunha —, transmitidas pelos mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus. Elas começam a produzir surtos em novos lugares no planeta, para onde passaram a migrar devido às altas temperaturas.

O Ministério da Saúde informa que o Sul do país foi a segunda região com maior incidência de dengue em 2022 e liderou as estatísticas nacionais no primeiro semestre do ano. Os três estados da região estão entre os cinco onde a doença mais matou em 2022, quando o Brasil registrou 1.016 mortes, um recorde. A dengue e doenças similares ganharam notoriedade em áreas tropicais de estados como Rio ou São Paulo, mas passaram a se expandir por regiões outrora mais frias, conforme o planeta aquece.

 “É algo que vemos na Europa e também no Sul do Brasil, onde hoje temos surtos de chicungunha e casos contínuos de dengue, ano após ano”, afirma o bioinformata Gabriel Wallau, pesquisador do Instituto Aggeu Magalhães, em Pernambuco. Ele integra um grupo de 74 cientistas de 54 países que defendem a “necessidade global e urgente” de usar a plataforma de vigilância genômica criada para a gripe e adotada com sucesso na pandemia da Covid-19 — chamada Global Initiative on Sharing All Influenza Data (Gisaid) — com o intuito de ampliar para além do Brasil o monitoramento da dengue e de outras arboviroses.

A Gisaid foi criada por cientistas de vários países em 2008 para divulgar o genoma do vírus influenza, responsável por surtos mundiais periódicos da gripe. Tornou-se o maior banco de dados de sequenciamento dos vírus da Covid-19 e provou ser um espaço essencial para a troca e coleta de informações científicas no enfrentamento de epidemias e surtos mundiais. É usado para facilitar a produção rápida de vacinas — como aconteceu na pandemia — e de outros medicamentos que enfrentem qualquer agente que ameace levar ao colapso sistemas de saúde pública.

De acordo com Wallau, o sequenciamento genômico dos arbovírus é feito por vários grupos em diversos países de forma desorganizada. A maior parte das informações está dispersa em diferentes bancos de dados, muito heterogêneos. “Para alguns genomas, não temos informações, para outros somente parte delas”, diz ele. Daí o pedido do grupo de cientistas para os pesquisadores de todo o mundo se conectarem à Gisaid. É crucial que a ciência use os recursos da era digital o mais rápido possível quando está em jogo a saúde da população.

Anistia escandalosa

Folha de S. Paulo

Garantir punição a partidos que violaram uso de verba pública é exigência básica

A atitude de perdoar quem infringe as regras legais possui efeitos colaterais bastante conhecidos. Quando a anistia ocorre com frequência, ela estimula nos atores o não cumprimento da legislação, pois fixa-se a expectativa de que as eventuais punições serão extintas adiante.

O problema se acentua quando os políticos que detêm o poder de decidir o perdão são os beneficiários diretos da medida. Os cidadãos que não dispõem desse privilégio passam a enxergar os legisladores com compreensível antipatia.

O fato de os congressistas estarem dispostos a abonar a transgressão de regras que eles mesmos aprovaram para regular a sua própria atividade eleitoral apõe uma camada adicional de indignação.

Fecha o quadro de uma anistia escandalosa saber que os partidos políticos, que pretendem ver-se livres de pagar multas à Justiça por suas faltas, sacaram do bolso dos contribuintes R$ 6 bilhões apenas no ano passado e dele retirarão outro bilhão neste ano não eleitoral.

O projeto de emenda constitucional que começou a tramitar em comissão especial na Câmara dos Deputados incorre em todos esses vícios. Apenas para começar, a amplíssima anistia em discussão faria evaporar a obrigação de partidos ressarcirem o erário em R$ 40 milhões pelas irregularidades na administração de recursos públicos no exercício de 2017.

Isso porque o Tribunal Superior Eleitoral julga a prestação de contas das agremiações com cinco anos de atraso. Se o perdão das punições sair como deseja a grande maioria do Congresso Nacional, a corte poderá perder seu tempo se tentar apurar os desvios ocorridos de 2018 a 2022, pois todo o período estará abrangido na anistia.

Passará impune a desobediência sistemática das regras que obrigam os partidos a sustentarem uma proporção mínima de vagas e de custeio para candidaturas de mulheres, pretos e pardos. A destinação de recursos públicos para finalidades absolutamente incompatíveis com o propósito de um partido político também será relevada.

Sem assegurar a sanção da Justiça, desembolsos como os já flagrados das verbas partidárias com compra de aviões, reforma de residências e aquisição de toneladas de carne permanecerão como um acinte ao pagador de impostos, que financia inadvertidamente a farra.

Está completamente fora de esquadro a dimensão que tomou no Brasil a apropriação de recursos da sociedade pelas oligarquias partidárias —escapa a qualquer princípio de boa representação política.

Associar o saque à permissividade no uso do dinheiro é tratar dezenas de milhões de brasileiros como otários. Os legisladores precisam entender em que mundo vivem e desistir dessa anistia absurda

Golpe no Níger

Folha de S. Paulo

Reação à queda da democracia no país africano reflete tensão entre EUA e Rússia

Espremido entre o deserto do Saara ao norte e as savanas africanas ao sul, o Sahel é uma zona árida e asfixiante em mais de um sentido.

Nos últimos anos, países que compõem a região foram palco do aumento da atividade de grupos terroristas islâmicos, da brutalidade de mercenários e de uma sequência de golpes de Estado.

A última peça do dominó a cair é o Níger, vasto país do tamanho do Pará e terceiro mais pobre do mundo, segundo a ONU.

Em 26 de julho, o presidente eleito democraticamente em 2021, Mohamed Bazoum, foi deposto por uma junta militar e submetido a prisão domiciliar. Ele fora empossado após a primeira transferência pacífica de poder no país desde a independência da França, em 1960.

A reação internacional ao golpe, numa região em que quarteladas são fatos corriqueiros, desta vez foi surpreendentemente dura.

Isso se explica pelo cenário geopolítico tenso, agravado pela guerra da Ucrânia. O Níger era um raro aliado do Ocidente na região contra a ameaça jihadista e atuava como uma barreira de contenção à infiltração do infame grupo russo Wagner, que já atua em países vizinhos como Mali, Burkina Faso e, um pouco mais ao sul, a República Centro-Africana.

Os mercenários, notórios pelo envolvimento na guerra da Ucrânia e pelo breve levante contra o presidente Vladimir Putin em junho, atuam na África como uma espécie de braço da política externa russa, fechando acordos com ditadores locais que muitas vezes incluem a expulsão de tropas ocidentais.

Soma-se a esse contexto o fato de o país ter algumas das maiores jazidas mundiais de urânio, mineral necessário tanto para bombas atômicas quanto para a descarbonização das fontes de energia.

Preso pela junta, mas ainda com meios para se comunicar, o presidente deposto fez um apelo direto por uma intervenção internacional na quinta-feira (3).

Países da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental cogitam uma força multinacional para restituir Bazoum ao poder, possivelmente com apoio de cerca de 1.100 soldados americanos baseados no Níger.

No entanto desfazer o golpe seria, na melhor das hipóteses, um pequeno alento para trazer alguma estabilidade. Em qualquer cenário, pobreza extrema, terroristas e disputas geopolíticas seguirão fazendo do Sahel uma das regiões mais irrespiráveis do planeta.

Violação contínua de direitos

O Estado de S. Paulo

Desde 2008 o CNJ realiza ‘mutirão’ para tirar da cadeia quem já não deveria estar lá. O fato de que todo ano essa ação é necessária mostra que o sistema de Justiça funciona muito mal

As prisões do 8 de Janeiro suscitaram, ao longo deste ano, muitos questionamentos sobre a legalidade e a efetiva necessidade da medida preventiva, bem como sobre o respeito aos direitos humanos das pessoas envolvidas nos atos antidemocráticos. De fato, o sistema prisional brasileiro é não apenas precário, mas desumano e degradante. Em 2008, o Supremo Tribunal Federal (STF) qualificou a situação dos presídios como “estado de coisas inconstitucional”, com “violação massiva de direitos fundamentais” da população prisional, por omissão do poder público. Dessa forma, é equivocado achar que o Estado viola direitos apenas em situações pontuais, numa espécie de perseguição contra determinados grupos políticos ou ideológicos. O problema é muito mais grave, muito mais abrangente.

Um dos grandes sintomas da violação contínua dos direitos fundamentais por parte do poder público é a necessidade de realizar periodicamente os mutirões carcerários. Neste ano, a previsão é de que o mutirão revise, nos meses de julho e agosto, mais de 100 mil processos. Essa revisão não é uma análise complexa, verificando, por exemplo, se houve algum erro judicial no processo ou se a jurisprudência dos tribunais superiores foi aplicada no caso concreto. O tema é mais básico. Trata-se tão somente de verificar, por exemplo, se a pessoa deveria estar solta, mas ainda está presa ou se tem direito a um regime de pena mais benéfico que, por erro, não lhe foi concedido.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realizou o primeiro mutirão carcerário em 2008 e, desde então, promove esse esforço concentrado de revisão num determinado período do ano. Eis o fato absolutamente constrangedor. Infelizmente, continua havendo muitas situações ilegais dentro dos presídios. O Estado não apenas pune o crime, mas também produz, ele mesmo, ilegalidades contra as pessoas presas. E isso, que deveria ser corrigido de forma habitual e imediata, é tão volumoso que demanda do poder público uma medida excepcional, o mutirão carcerário.

Nos últimos anos, a sistemática do mutirão foi modificada. Entre 2008 e 2014, juízes eram deslocados para diferentes unidades da Federação, para analisar a situação processual das pessoas que cumpriam pena e inspecionar unidades carcerárias. Agora, não há esse deslocamento. São os magistrados da própria unidade que fazem a revisão dos processos. Entre outros motivos, essa simplificação da sistemática foi possível graças ao aperfeiçoamento tecnológico implementado pelo CNJ. Há uma ferramenta que centraliza e unifica a execução penal em todo o País.

De toda forma, a implementação da tecnologia continua coexistindo com violações sistemáticas de direitos das pessoas presas. E, não se pode esquecer, uma vez que segue havendo nos presídios situações degradantes e desumanas, inspeções com juízes de outra unidade da Federação são uma oportunidade para trazer à tona esse gravíssimo problema.

O mutirão deste ano tem como temas prioritários o tratamento de gestantes, mães, pais e responsáveis por crianças menores de 12 anos e pessoas com deficiência; o cumprimento de pena em regime prisional mais gravoso do que o fixado na sentença condenatória; a situação de presos condenados pela prática de tráfico privilegiado e que estão cumprindo pena em regime não aberto; e os casos de prisões provisórias com duração superior a 12 meses.

É louvável que o CNJ promova esse tipo de ação, mas não se pode ignorar que o cuidado com os direitos das pessoas que estão sob o domínio do Estado deve ser medida habitual, corriqueira. Se todo ano o mutirão é necessário, isso é a prova de que o sistema está funcionando mal, com a produção ininterrupta de novas ilegalidades e de novas injustiças.

O mutirão carcerário revela também o real estado do direito de defesa no Brasil. Apesar da atuação da Defensoria Pública, frequentemente heroica, muitos presos continuam não dispondo de uma assistência jurídica adequada. Se tivessem seus direitos bem representados, não seria necessário nenhum mutirão.

‘Geringonça’ à brasileira

O Estado de S. Paulo

É de interesse da sociedade que Lula e o Centrão se ajustem para formar uma coalizão de governo. Desde que, é claro, o pacto seja firmado em torno de uma agenda virtuosa para o Brasil

“Geringonça” é como se chama a coalizão de governo em Portugal, desde novembro de 2015, sob a liderança do primeiro-ministro António Costa. Assim é chamada porque congrega um grupo de partidos que, em maior ou menor grau, têm posições ideológicas e projetos para o país distintos entre si. Contudo, malgrado essas diferenças, o semipresidencialismo lusitano tem se provado bem-sucedido. Aqui, a ver se um arranjo político parecido na forma, ora em construção pelo presidente Lula da Silva e próceres do Centrão, em particular o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), resultará em ganhos para o Brasil como a “Geringonça” resultou para Portugal, que é o que interessa.

A posse de Celso Sabino como ministro do Turismo deu a feição dessa baralhada, chamemos assim, que Lula quer montar, a exemplo da “Geringonça”, para governar com relativa tranquilidade até 2026. Como se viu, a cerimônia foi um desfile da fina flor do governismo, marca indelével das legendas que compõem o Centrão. Além do União Brasil, partido de Sabino, líderes do PP e do Republicanos, entre outros partidos com interesse em se aproximar do governo, também se fizeram presentes no Palácio do Planalto.

O sucesso dessa, digamos, “Geringonça” à brasileira dependerá da resposta a uma pergunta assaz singela: o que une partidos políticos de posições ideológicas e programáticas tão distintas das do PT como União Brasil, PP ou Republicanos, por exemplo? Trata-se de uma coalizão em torno de um plano de governo que representa consensos mínimos sobre uma agenda virtuosa para o País ou de mera “acomodação dos mais variados interesses privados e setoriais via cofres públicos”, como bem descreveu William Waack, colunista deste jornal, há poucos dias?

Hoje, o governo Lula não tem um rumo bem definido para o País, vale dizer, um plano estratégico que indique aonde o Brasil chegará nos próximos quatro anos. Há platitudes, como “retomar o crescimento”, “recuperar as áreas da saúde e da educação”, “gerar empregos”, etc. Como atingir esses objetivos mantendo a higidez das contas públicas, não se sabe. Lula em pessoa não cansa de acenar para o atraso ao louvar os erros que marcaram governos petistas no passado e ameaçar o País com a sua repetição. Move-se na direção contrária aos avanços legislativos aprovados enquanto o PT esteve fora do poder.

Até aqui, a voz da ponderação quase isolada no governo é a do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Em geral, têm vindo dele, como um articulador político pragmático, as sinalizações positivas de que algo próximo a um programa de governo bem estruturado, ao menos na seara econômica, que é a que lhe compete, norteia a administração federal.

No outro lado da mesa de negociação para a formação dessa coalizão está o Centrão e sua notória amorfia, uma junção de partidos cujos movimentos se ajustam ao tempo presente e aos interesses de ocasião, seja qual for a orientação política do governo instalado.

É da concertação entre essas duas forças – Lula, com seus 60 milhões de votos, e o Centrão, como grei indispensável para a formação de maiorias no Congresso – que resultará a conformação do governo que levará o País até a próxima eleição geral. Tanto ao Executivo como ao Legislativo interessa essa aproximação, como mostrou Carlos Pereira, também colunista do Estadão, ao tratar das razões que tornam tão difícil a vida dos partidos que se dispõem a ser oposição no Brasil.

À sociedade, em boa medida, também interessa essa aproximação, desde que dela resulte o acordo sobre a aprovação de projetos de interesse do País. Ou seja, desde que a negociação se estabeleça em termos republicanos.

É um grande equívoco condenar, a priori, quaisquer negociações políticas que visam à formação de uma base de apoio congressual ao governo de turno. Esse tipo de troca, ou divisão de poder, é da própria essência da democracia. Afinal, é fácil governar um país à força, sob regime de partido único. Não há conflitos, não há sobre o que transigir. O busílis são os pilares que sustentam essa acomodação.

Para o Estado contratar bem

O Estado de S. Paulo

Em análise no Senado, lei geral de concursos públicos contribui para funcionamento da burocracia

Há mais de 20 anos tramita no Congresso uma proposta de marco jurídico para os concursos públicos. O projeto original (PL 92/2000) foi apresentado em 2000 pelo senador Jorge Bornhausen. No ano passado, a Câmara aprovou o projeto substitutivo (PL 2.258/2022), que agora está em análise pelo Senado. Trata-se de tema importante, que regulamenta as disposições constitucionais. Apenas contratando bem, o poder público terá condições de funcionar bem, prestando bons serviços à população.

Após estabelecer os princípios gerais da administração pública – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência –, o art. 37 da Constituição dispõe que “os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei”. Tem-se aqui um parâmetro fundamental: as regras para o preenchimento dos cargos públicos são oriundas da lei, e não da vontade do governante ou de quem está no cargo público.

Mas a Constituição vai além, dizendo que “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei”. Ou seja, com exceção dos cargos em comissão, todos os outros devem ser preenchidos por meio de processo seletivo público, aberto em tese a todos.

A realização de concurso público é um dos grandes meios de aperfeiçoamento do poder público. No entanto, até hoje, o País nunca teve uma lei geral de concursos públicos. Entre outros efeitos, essa ausência suscita uma forte judicialização, com o Judiciário intervindo na escolha dos candidatos, o que é disfuncional. O PL 2.258/2022 é caminho para prover maior segurança jurídica.

Outro aspecto disfuncional dos concursos públicos atuais é a tendência a sobrevalorizar títulos educacionais e conhecimentos teóricos, em detrimento de habilidades que, muitas vezes, são decisivas para o exercício do cargo público. Há uma seleção desalinhada com as necessidades reais da administração pública.

No atual panorama dos concursos públicos, há baixa diversidade entre os aprovados. A renda pessoal e familiar do candidato é ainda um dos elementos preponderantes na definição do desempenho. Um dos objetivos do PL 2.258/2022 é justamente ampliar a diversidade no setor público, tornando os processos seletivos mais acessíveis, também do ponto de vista financeiro. Uma das medidas para isso é fomentar, por meio de uma regulação adequada, concursos públicos digitais.

Fruto de intenso diálogo com a academia, o PL 2.258/2022 dispõe sobre as diversas etapas de um concurso público, desde a autorização, o planejamento, a execução até a avaliação, na União, nos Estados e nos municípios. Ao fixar critérios gerais, o marco regulatório dos concursos pode contribuir para modernizar a administração pública, assegurando que os servidores públicos tenham as competências necessárias para os respectivos cargos. Todos ganham.

 

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