Valor Econômico
Se quer dar segurança ao BC na redução da
Selic, o fundamental é o governo atuar para diminuir dúvidas que continuam a
existir sobre as contas públicas
O novo arcabouço fiscal contribuiu para o clima de maior otimismo sobre o Brasil dos últimos meses, em combinação com a aprovação da reforma tributária pela Câmara dos Deputados, o desempenho melhor que o esperado da economia e o cenário externo mais favorável, além do bom resultado das contas externas. O dólar opera abaixo de R$ 5 há semanas, e a agência de classificação de risco Fitch elevou a nota de crédito do país de BB- para BB. No entanto, algumas incertezas importantes sobre as contas públicas continuam a existir, ainda que a nova regra tenha afastado riscos mais extremos e iminentes.
Uma redução dessas indefinições será
fundamental para um ciclo sustentado de queda dos juros, iniciado na semana
passada, com o corte da Selic de 13,75% para 13,25% ao ano. Se aumentarem as
dúvidas sobre a trajetória das contas públicas, a percepção sobre o risco
Brasil voltará a subir. Isso pressionaria indicadores como o CDS (credit
default swaps, uma espécie de seguro contra calotes), os juros futuros e o
câmbio, afetando as perspectivas mais favoráveis para a inflação. Num quadro
como esse, o ciclo de baixa dos juros tenderia a ser mais curto e menos
intenso.
Para começar, o novo arcabouço depende de
aumentos expressivos de receitas para bancar o crescimento de despesas sempre
acima da inflação, de 0,6% a 2,5% ao ano, e há dúvidas relevantes sobre a
capacidade de o governo conseguir elevar com força a arrecadação nos próximos
anos. Não será uma tarefa fácil ampliar as receitas na magnitude requerida para
cumprir as metas de resultado primário, que excluem os gastos com juros. Para
zerar o déficit do governo central em 2024, como pretende a equipe econômica, é
necessária uma arrecadação extra de R$ 130 bilhões, dos quais boa parte depende
da aprovação de mudanças na legislação que tramitam no Congresso, ou mesmo de
medidas não apresentadas formalmente, como mostrou reportagem do Valor na semana passada.
Na visão dos economistas, as projeções
indicadas no arcabouço para o resultado primário do governo federal deste ano e
para o próximo não deverão ser cumpridas. Para 2023, a estimativa central é de
um déficit de 0,5% do PIB; para 2024, a intenção é zerar o rombo. Na
sexta-feira, a XP divulgou as suas novas projeções econômicas, estimando
déficit de 1% do PIB para os dois anos.
Em 21 de julho, o Ministério do
Planejamento divulgou o Relatório Bimestral de Avaliação de Receitas e Despesas
relativo ao terceiro bimestre, elevando a previsão do déficit primário do
governo central para 2023 de R$ 136,2 bilhões para R$ 145,4 bilhões, o
equivalente a 1,4% do PIB, um número bem distante do rombo de 0,5% do PIB que
aparece na projeção central do arcabouço - a estimativa da regra aponta um
intervalo de um déficit de 0,25% a 0,75% do PIB. Em resumo, nem o próprio
governo prevê que o resultado primário ficará em -0,5% do PIB neste ano -
integrantes do Planejamento falam num buraco de 1% do PIB, mesmo assim maior
que a projeção do arcabouço.
No seu relatório anual sobre a economia
brasileira que veio a público na semana passada, o Fundo Monetário
Internacional (FMI) tampouco estima que o déficit primário do governo central
será zerado no ano que vem. O FMI projeta um rombo de 1,3% do PIB em 2023 e de
0,8% do PIB em 2024. O resultado só volta ao azul em 2026, com um superávit de
0,3% do PIB, nas contas do Fundo.
Numa análise detalhada do arcabouço fiscal,
o FMI aponta alguns problemas e faz sugestões para aperfeiçoar a nova regra. O
relatório diz que o arcabouço dá sustentação à gestão da responsabilidade
fiscal, mas se tornou “relativamente complexo”. A instituição aponta
inconsistências internas no modelo, como limites para gastos (ainda que acima
da inflação), enquanto despesas obrigatórias continuam a crescer. Há também o
viés pró-cíclico, pela vinculação da expansão dos gastos à variação da receita
no ano anterior. O FMI vê ainda aumento da rigidez com o novo arcabouço, uma
vez que há pisos para o crescimento das despesas e para o investimento. Entre
as ideias para aperfeiçoar a nova âncora fiscal, o Fundo sugere uma regra que
enfrente o nível elevado dos gastos públicos como proporção do PIB, reduzindo
os riscos de um ajuste fiscal apenas por meio do aumento de receitas.
No curto prazo, a possibilidade mais
concreta de tornar o arcabouço mais firme é a Câmara dos Deputados derrubar
mudanças introduzidas pelo Senado, como as que abrem espaço para mais despesas.
Os deputados devem apreciar o projeto neste mês.
A situação fiscal do país não é dramática,
mas está longe de estar equacionada. Os números mais recentes já mostram as
contas públicas no terreno deficitário - o resultado do setor público
consolidado, que inclui Estados, municípios e estatais não financeiras,
excluindo Petrobras e Eletrobras, ficou negativo em 0,24% do PIB nos 12 meses
até junho. Além disso, os dados do segundo semestre devem apontar um aumento do
rombo, como indicam as projeções de bancos e consultorias do próprio governo
para o desempenho do ano. A percepção sobre as contas públicas pode piorar se
não ficar claro que o governo levantará as receitas conforme previsto na nova
regra, colocando em risco o esforço fiscal para deter o crescimento da dívida
do governo em relação ao PIB.
Um crescimento mais forte da economia em
2024 do que o projetado hoje pode gerar uma arrecadação maior, assim como a
queda das despesas com juros também ajudará na dinâmica do endividamento
público. Mas, se quer dar segurança ao Banco Central (BC) no processo de
redução da Selic, o fundamental é o governo atuar para diminuir incertezas
fiscais que permanecem, mesmo que o arcabouço fiscal tenha afastado a ameaça de
cenários mais adversos.
Pois é.
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