O Estado de S. Paulo
Com Bolsonaro inelegível, mas ainda relevante, a direita tem, aqui, o desafio de encontrar seu caminho de volta para o leito normal da democracia
A estigmatização dos imigrantes como
elementos nocivos e perigosos à sociedade é uma nota constante na retórica da
extrema direita na Europa e nos Estados Unidos. Batendo nessa tecla, partidos
antes à margem do sistema político passaram a ameaçar partidos conservadores
tradicionais. Temerosos de perder sua base eleitoral, vários destes
incorporaram aos seus discursos e programas temas típicos da extrema direita.
Junto com a estigmatização e a violação dos direitos humanos dos imigrantes
vieram a valorização de um nacionalismo de base étnica, racial e/ou religiosa e
a reafirmação dos tradicionais valores cristãos contra a aceitação da igualdade
e diversidade de gênero, orientação sexual e formas de constituir família. Vem
se rompendo, assim, o cordão sanitário protetor das democracias do Hemisfério
Norte desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Caso recente se deu na Espanha. Em maio, a direita venceu as eleições locais. O Partido Popular (PP), da direita democrática, decidiu aliar-se ao Vox, partido de extrema direita que, em rápida ascensão, se tornou uma das principais forças políticas do país nos últimos anos. Assumiram, juntos, o governo de comunidades autônomas importantes como Valência e Castela e Leão. Entusiasmado com o resultado das eleições locais, o PP dobrou a aposta para as eleições nacionais, antecipadas para julho, com a pretensão de atrair o voto da extrema direita e ganhar a maioria necessária no Parlamento para liderar um novo governo.
Felizmente, deu-se mal. As forças
democráticas se mobilizaram para impedir que um partido de extrema direita,
pela primeira vez desde o fim da longa ditadura franquista (1939-1976), chegasse
ao governo nacional. O PP venceu a eleição por pequena margem de votos. Ganhou,
mas não levou, porque a aliança com o Vox afugenta outros partidos de
centro-direita que seriam necessários para conseguir a maioria absoluta dos
votos no Parlamento. É provável que uma aliança de centro-esquerda forme o novo
governo.
Ao aliar-se com Jair Bolsonaro, a direita
brasileira rompeu o cordão sanitário que se havia formado desde o fim da
ditadura militar. Foi necessário que as instituições democráticas resistissem e
um amplo arco de forças políticas se unisse para o País não ser levado a uma
aventura golpista.
Com Bolsonaro inelegível, mas ainda
relevante, a direita tem, aqui, o desafio de encontrar seu caminho de volta
para o leito normal da democracia. Semelhante desafio enfrenta a direita
espanhola. Interessa a todos, menos aos extremistas, que a direita aqui e lá
faça esse percurso. Não há democracia sólida sem uma direita democrática forte.
Declarações recentes dos governadores de
São Paulo e de Minas Gerais, candidatos a liderar a normalização da direita,
indicam que o caminho no Brasil será tortuoso. Hoje não basta respeitar as
regras do jogo, mas também os valores de uma sociedade democrática, entre os
quais se destaca o princípio da dignidade humana.
Tarcísio de Freitas tratou as vítimas da
operação policial no Guarujá como “danos colaterais”, apesar de todos os
indícios apontarem para a ocorrência de uma caçada para retaliar o assassinato
de um policial da Rota. Com o secretário de Segurança que nomeou, o governador
não se pode dizer surpreendido com o modus operandi adotado pela polícia nesse
episódio. Em lugar de se comprometer com o esclarecimento das circunstâncias em
que ocorreram os fatos, solidarizou-se com a tropa, a despeito dos vários
indícios de execuções e violência indiscriminada da polícia. Parece querer usar
à la carte o cardápio da extrema direita. De um lado, cerca-se de técnicos. De
outro, bate na surrada tecla do “bandido bom é bandido morto”, que já se provou
inútil como doutrina de segurança pública e letal para milhares de jovens,
pretos e pobres.
Já o governador de Minas Gerais resolveu
inovar, tropicalizando a retórica da extrema direita do Hemisfério Norte. Como
os imigrantes no Brasil são poucos numa população de mais de 200 milhões, o governador
mineiro fez mira no Nordeste. A entrevista que deu a este jornal, publicada no
dia 6 de agosto, repete o mote já empregado por ele em junho, num encontro
entre governadores do Sul e do Sudeste. Fingindo-se de tonto, falando como quem
cuida de legítimos interesses dessas regiões, Zema destila o venenoso
preconceito existente contra os nordestinos, comparados por ele a “vaquinhas
que produzem pouco”. Não se trata de uma crítica às oligarquias do Nordeste. E,
sim, da estigmatização sub-reptícia dos nordestinos em geral. A estratégia é
clara: mobilizar, pelo preconceito, o voto conservador do Sul, do Sudeste e do
Centro-Oeste, para compensar o maciço apoio ao PT no Nordeste.
Assim como as vistas grossas de Tarcísio de
Freitas para a truculência policial, o regionalismo torpe de Romeu Zema é
irresponsável. Ameaça a convivência democrática e fere o sentimento de que
pertencemos a uma só e mesma nação. Merece repúdio de todos os verdadeiros
democratas e patriotas.
*DIRETOR-GERAL DA FUNDAÇÃO FHC, É MEMBRO DO
GACINT-USP
Verdade.
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