O Globo
Além de mergulhar até o fundo na areia
movediça da Justiça em duas frentes críticas, ex-presidente a cada dia arrasta
mais os militares consigo
Não é possível atestar, no momento, se todo
o teor dos depoimentos de Walter Delgatti Neto à CPMI do 8 de Janeiro e à
Polícia Federal é verídico. A gravidade da trama revelada por ele — um
presidente da República pedindo a um hacker para criar um código-fonte fake das
urnas eletrônicas, em conluio com o Ministério da Defesa, depois sugerindo que
ele assumisse o grampo num ministro do Supremo Tribunal Federal em troca de um
indulto — é inaudita até para os padrões cada vez mais aloprados do
bolsonarismo.
Ainda que não haja meios de provar os pedidos de Bolsonaro, o que já está comprovado é suficiente para implicar o ex-presidente e boa parte da cúpula militar numa conspiração para desacreditar o sistema eleitoral brasileiro. Não eram as urnas que eram passíveis de fraude. Era o presidente da República que estava empenhado em fraudá-las ou, pelo menos, em simular uma fraude e, a partir disso, tentar alguma medida de exceção.
Como nos gibis ou desenhos animados em que
vilões canhestros se valem de planos infalíveis, todas as maneiras que
Bolsonaro buscou para atingir seu objetivo naufragaram. A malfadada reunião dos
embaixadores, a live em que ele tentou comprovar que a eleição de 2014 fora
fraudada, o café da manhã com o hacker, aquela pantomima encenada pelos Fábios,
Wajngarten e Faria, às vésperas do segundo turno para tentar apontar um complô do
TSE e de rádios para suprimir propaganda do candidato do PL, a operação nas
estradas para parar ônibus de eleitores no Nordeste, os 7 de Setembro de 2021 e
2022 são apenas alguns dos atos tragicômicos que mostram o então presidente da
República arregimentando militares, servidores públicos, TV estatal,
corporações como a Polícia Rodoviária Federal e outros meios de Estado para
tentar solapar a democracia e conspurcar o processo eleitoral.
Em todas essas apurações, há aliados de
Bolsonaro investigados, presos ou que já estiveram presos, que podem levar à
comprovação do que Delgatti disse ter ocorrido: ordem do então presidente para
que se cometessem as ações delinquentes. Esse é o braço com maior potencial de
condenação penal para Bolsonaro, para além da pena eleitoral que ele já recebeu
e que o tira da eleição de 2026.
Graças à Lei da Ficha Limpa e à Justiça
Eleitoral com suas prerrogativas, o Brasil foi mais rápido e mais eficiente em
punir os desmandos de um autocrata que usou o poder político e econômico para
tramar contra o Estado Democrático de Direito que os Estados Unidos, onde, a
despeito de todas as denúncias, Donald Trump ainda poderá disputar novo mandato
presidencial no ano que vem.
O outro ramo em que Bolsonaro está mergulhado
até o pescoço são as suspeitas de desvio de patrimônio público para
enriquecimento pessoal ilícito. Para desespero dele, as duas frentes avançam a
passos largos, com muitos rastros deixados pelo descuido, que denota a certeza
absoluta na impunidade e no sucesso de tantas empreitadas ilegais.
A concomitância de investigações, com
decisões que ora miram um veio, ora outro, é mais um sinal de que o sistema de
Justiça brasileiro, formado por STF, PF e até Ministério Público Federal,
estudou o caso americano e entendeu que não poderia andar tão lentamente e de
forma tão tímida diante de uma intentona golpista e de pilhagem dos cofres
públicos como a que se desdobrou nos últimos anos.
Além de mergulhar até o fundo na areia
movediça da Justiça, Bolsonaro a cada dia arrasta mais os militares consigo. A
confirmação dele e de seu filho Flávio de que a orientação a Delgatti era mesmo
prosseguir as tratativas com o Ministério da Defesa torna estéril o esforço do
ministro José Mucio de tentar, de novo, contemporizar e poupar os militares, em
nome da recomposição das relações políticas com o governo Lula.
Uma lambança generalizada.
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