sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Vera Magalhães - Bolsonaro no centro da conspiração

O Globo

Além de mergulhar até o fundo na areia movediça da Justiça em duas frentes críticas, ex-presidente a cada dia arrasta mais os militares consigo

Não é possível atestar, no momento, se todo o teor dos depoimentos de Walter Delgatti Neto à CPMI do 8 de Janeiro e à Polícia Federal é verídico. A gravidade da trama revelada por ele — um presidente da República pedindo a um hacker para criar um código-fonte fake das urnas eletrônicas, em conluio com o Ministério da Defesa, depois sugerindo que ele assumisse o grampo num ministro do Supremo Tribunal Federal em troca de um indulto — é inaudita até para os padrões cada vez mais aloprados do bolsonarismo.

Ainda que não haja meios de provar os pedidos de Bolsonaro, o que já está comprovado é suficiente para implicar o ex-presidente e boa parte da cúpula militar numa conspiração para desacreditar o sistema eleitoral brasileiro. Não eram as urnas que eram passíveis de fraude. Era o presidente da República que estava empenhado em fraudá-las ou, pelo menos, em simular uma fraude e, a partir disso, tentar alguma medida de exceção.

Como nos gibis ou desenhos animados em que vilões canhestros se valem de planos infalíveis, todas as maneiras que Bolsonaro buscou para atingir seu objetivo naufragaram. A malfadada reunião dos embaixadores, a live em que ele tentou comprovar que a eleição de 2014 fora fraudada, o café da manhã com o hacker, aquela pantomima encenada pelos Fábios, Wajngarten e Faria, às vésperas do segundo turno para tentar apontar um complô do TSE e de rádios para suprimir propaganda do candidato do PL, a operação nas estradas para parar ônibus de eleitores no Nordeste, os 7 de Setembro de 2021 e 2022 são apenas alguns dos atos tragicômicos que mostram o então presidente da República arregimentando militares, servidores públicos, TV estatal, corporações como a Polícia Rodoviária Federal e outros meios de Estado para tentar solapar a democracia e conspurcar o processo eleitoral.

Em todas essas apurações, há aliados de Bolsonaro investigados, presos ou que já estiveram presos, que podem levar à comprovação do que Delgatti disse ter ocorrido: ordem do então presidente para que se cometessem as ações delinquentes. Esse é o braço com maior potencial de condenação penal para Bolsonaro, para além da pena eleitoral que ele já recebeu e que o tira da eleição de 2026.

Graças à Lei da Ficha Limpa e à Justiça Eleitoral com suas prerrogativas, o Brasil foi mais rápido e mais eficiente em punir os desmandos de um autocrata que usou o poder político e econômico para tramar contra o Estado Democrático de Direito que os Estados Unidos, onde, a despeito de todas as denúncias, Donald Trump ainda poderá disputar novo mandato presidencial no ano que vem.

O outro ramo em que Bolsonaro está mergulhado até o pescoço são as suspeitas de desvio de patrimônio público para enriquecimento pessoal ilícito. Para desespero dele, as duas frentes avançam a passos largos, com muitos rastros deixados pelo descuido, que denota a certeza absoluta na impunidade e no sucesso de tantas empreitadas ilegais.

A concomitância de investigações, com decisões que ora miram um veio, ora outro, é mais um sinal de que o sistema de Justiça brasileiro, formado por STF, PF e até Ministério Público Federal, estudou o caso americano e entendeu que não poderia andar tão lentamente e de forma tão tímida diante de uma intentona golpista e de pilhagem dos cofres públicos como a que se desdobrou nos últimos anos.

Além de mergulhar até o fundo na areia movediça da Justiça, Bolsonaro a cada dia arrasta mais os militares consigo. A confirmação dele e de seu filho Flávio de que a orientação a Delgatti era mesmo prosseguir as tratativas com o Ministério da Defesa torna estéril o esforço do ministro José Mucio de tentar, de novo, contemporizar e poupar os militares, em nome da recomposição das relações políticas com o governo Lula.

 

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