segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Bruno Carazza* - A revolução silenciosa e a reforma administrativa

Valor Econômico

Pix revolucionou o sistema financeiro apesar de governos e do Congresso

Organizando gavetas e armários neste feriadão, encontrei uma pasta com cópias impressas de meus extratos bancários de 20 anos atrás, quando iniciava minha vida profissional e familiar. Mais do que registros financeiros de uma vida que já parece distante na memória - sem filhos, morando em outra cidade e num trabalho completamente diferente do atual -, a sucessão de linhas de créditos e débitos são atestados de uma revolução silenciosa ocorrida na economia brasileira.

Em setembro de 2003, com 14 saques e 7 cheques compensados, as operações mais frequentes na minha conta bancária representavam 28% do valor de todas as minhas despesas financeiras.

Vinte anos depois, abro o aplicativo do meu banco no celular e constato que realizei apenas quatro saques bancários neste ano e já não consigo lembrar quando preenchi uma folha de cheque pela última vez.

No mês passado, embora a fatura do cartão de crédito (51,6%) e os boletos bancários (26,1%) ainda sejam responsáveis pela maior parte dos meus gastos em termos de valor, 22,2% de todos os meus pagamentos foram realizados por pix.

Pela rapidez da transação e a ausência de custos, a transferência instantânea entre contas se tornou a forma preferencial de recebimento de todo o tipo de prestador de serviços com quem eu e minha família nos relacionamos, de bombeiros hidráulicos a psicólogos, passando por professores particulares de inglês e matemática e salões de beleza. De acordo com um relatório publicado há alguns dias pelo Banco Central, 133 milhões de pessoas e 11,9 milhões de empresas utilizavam o pix em dezembro de 2022. Somente naquele mês foram realizadas 2,9 bilhões de transferências que movimentaram R$ 1,2 trilhão. O valor médio das transações entre pessoas físicas foi de R$ 257,00, embora 93% de todas as operações ficassem abaixo do valor de uma nota do lobo-guará.

Se tomarmos apenas o varejo brasileiro, o pix já é a opção preferencial dos consumidores, perfazendo 33% de todas as transações realizadas no quarto trimestre de 2022. Comparando-se com a configuração desse mercado desde o início da sua operação, no final de 2020, o sistema de pagamentos instantâneo criado pelo Banco Central ocupou espaço dos boletos e convênios de cobrança (com redução de 33% para 17% das operações), dos cartões de débito (de 26% para 17%) e de crédito (queda de 20% para 18%), das TEDs e DOCs (de 9% para 2%) e dos saques (de 9% para 2%).

O fato mais notável nessa revolução provocada pelo pix é que ela ocorreu de forma praticamente independente do governo de plantão ou das negociações no Congresso. Ainda que na campanha eleitoral do ano passado o ex-presidente Jair Bolsonaro tenha tentado se apropriar do sucesso do pix como se fosse uma marca de sua gestão, a equipe técnica do Banco Central começou a discutir o tema internamente em 2013, como uma evolução do Sistema de Pagamentos Brasileiro, que havia criado a TED em 2002.

Atento à experiência internacional - a Coreia havia implementado o primeiro sistema instantâneo em 2001 -, o Bacen realizou um workshop para conhecer as melhores práticas e os requisitos técnicos para a instalação de um sistema similar no Brasil em 2016. A partir daí, a diretoria do órgão montou um grupo de trabalho para tratar do assunto em 2018, contando com a participação de integrantes de todo o ecossistema do setor.

No ano seguinte foi criado o Fórum Pix para o desenvolvimento das plataformas tecnológicas no ambiente do próprio Banco Central, seguido de um intenso trabalho de regulamentação do sistema de pagamentos e de comunicação junto à sociedade, até o início da operação em 16/11/2020.

A estratégia do pix é um caso emblemático de uma vitoriosa política de Estado, levada adiante mesmo em meio às turbulentas mudanças de governo e de orientação econômica ocorridas nos últimos dez anos no Brasil.

O sucesso do pix também é um exemplo do que o tão criticado funcionalismo público brasileiro tem de melhor. Dificilmente um sistema tão complexo teria sido concebido e implementado se não houvesse um corpo técnico de servidores públicos muito bem preparado e capacitado, em um órgão protegido de ingerências políticas como é o Banco Central.

O serviço público brasileiro tem uma série de distorções e funciona mal em muitas situações. Há carreiras em excesso, penduricalhos salariais fazem com que algumas categorias sejam remuneradas de forma desconectada da realidade brasileira e não existe política de avaliação de desempenho.

Infelizmente, o projeto de reforma administrativa em discussão no Congresso não ataca esses problemas. Pelo contrário: a PEC nº 32/2020 fragiliza o instituto do concurso público, estimula a terceirização de atividades em áreas estratégicas e aumenta a possibilidade de contratos temporários e indicações políticas no preenchimento de cargos relevantes.

Se a classe política brasileira realmente estiver interessada em melhorar o funcionamento do Estado, antes de levar adiante mudanças precipitadas como a reforma administrativa defendida por Arthur Lira, é bom começar por identificar os casos bem-sucedidos. E a experiência do Banco Central com o pix certamente está entre eles.

*Bruno Carazza é professor associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”. 

 

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