segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Camila Rocha* - Kassio e Mendonça evitam olhar para o óbvio

Folha de S. Paulo

Ainda que não tenha sido bem-sucedida, tentativa de golpe no dia 8 de janeiro é nítida

Parte expressiva da população brasileira ainda compreende que o ataque aos três Poderes no dia 8 de janeiro se resumiu a atos de vandalismo. Opinião compartilhada por Kassio Nunes Marques, ministro do STF indicado por Jair Bolsonaro.

André Mendonça, outro juiz indicado por Bolsonaro, também acredita que não houve tentativa de golpe de Estado. Em suas palavras, a perspectiva dos "manifestantes" era criar uma situação de instabilidade institucional. Contudo, em seu entendimento, qualquer golpe de Estado dependeria, basicamente, da ação de militares.

É um equívoco grave acreditar que um golpe demandaria, necessariamente, a ação de militares. Afinal, a simples omissão de amplos setores das forças de repressão, incluindo as polícias, quase precipitou o país no caos. Não fossem as ações enérgicas tomadas pelo Judiciário, o cenário político poderia ter sido outro.

De acordo com a cientista política Lilian Sendretti, em 2018 foram registrados 147 protestos da extrema direita, em 2019 foram 254 e no ano seguinte, 278. Com o aumento do número de protestos, um grupo chamado "300 do Brasil" inaugurou um repertório de ação coletiva mais disruptivo ao acampar em Brasília por mais de um mês e tentar invadir o Senado em 2020. Esse foi o primeiro grupo a defender abertamente um golpe de Estado, mas acabou com seus principais líderes presos.

Nos anos seguintes, Bolsonaro insistiu que o sistema eleitoral brasileiro, baseado em votação eletrônica, seria falho e sujeito a manipulação política. Em abril de 2021, afirmou que só deixaria a Presidência se morresse.

Duas semanas após a proposta de impressão do voto ter sido rejeitada pelo Congresso, em agosto de 2021, Bolsonaro declarou que só tinha três opções possíveis para o futuro: morte, prisão ou vitória e o número de protestos da extrema direita disparou desde então.

Segundo Sendretti, os atos passaram de 769, em 2021, para 1.822 no ano seguinte. A maioria foram bloqueios de estradas, em boa medida, facilitados pela omissão das forças de repressão. Em novembro de 2022, o aumento da violência atingiu níveis alarmantes. Além dos bloqueios de estradas, houve relatos de vandalismo, saques, incêndios criminosos e até mesmo sequestros.

Ao mesmo tempo, centenas de pessoas começaram a acampar nos arredores dos quartéis militares, demandando explicitamente uma intervenção militar para destituir Lula. Contudo, ao perceberem que os militares não tinham nenhum plano real de golpe, e que Bolsonaro havia deixado o país, diferentes táticas passaram a ser aventadas, todas com o propósito de desestabilizar o país e inviabilizar o governo eleito.

Considerando as experiências acumuladas com incêndios e atentados a bomba ocorridos nos meses anteriores, os golpistas poderiam ter utilizado táticas muito mais violentas. Mas é interessante notar que, segundo o pesquisador do Cebrap, Jonas Medeiros, uma das principais inspirações dos golpistas era a ação de manifestantes do Sri Lanka, que sem qualquer participação de forças de repressão, em 2022 invadiram o palácio presidencial, forçando o presidente a fugir e renunciar.

Ainda que não tenha sido bem-sucedida, a tentativa de golpe no dia 8 é nítida. Resta saber se, além de algumas dezenas de cidadãos comuns, os articuladores de alto escalão serão, de fato, responsabilizados de acordo com a gravidade do ocorrido.

*Doutora em ciência política pela USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

 

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