Folha de S. Paulo
Debate sobre marco temporal desenrola-se em
torno de posições irreconciliáveis
"Nahalal surgiu no lugar de Mahalul,
Gevat no de Jibta, Sarid no de Haneifs e Kefar Yehoshua no de Tell Shaman. Não
há um único lugar construído neste país que não teve uma população árabe
anterior." No registro célebre de Moshe Dayan sobre Israel, troque os
nomes árabes por toponímias indígenas –pronto, estamos no Brasil. Na hora em
que encara a questão do chamado "marco temporal", o STF precisa,
previamente, decidir se pretende abolir o pecado original.
O general Dayan, ministro da Defesa na Guerra dos Seis Dias (1967), mencionou os nomes árabes numa palestra a estudantes de Haifa, em 1969. Ele alertava contra a boçalidade: a atitude de apagar a história do povo vencido. Sonhava, ainda, fazer a paz possível –mas não lhe passava pela cabeça a ideia de reedificar os antigos vilarejos árabes no lugar dos novos povoados israelenses.
Dos aborígenes australianos aos cátaros da
Ocitânia francesa, a despossessão tinge a história das nações. O que hoje é
Brasil foi terra de povos indígenas. A cidade de São Paulo nasceu no lugar de
uma aldeia tupiniquim. Os relatos dos primeiros exploradores europeus que
singraram o Amazonas dão conta da existência de aldeamentos com milhares de
indígenas. Os direitos nacionais dos palestinos dependem de um acordo estatal.
Já os cidadãos indígenas brasileiros têm direitos constitucionais. O risco,
porém, é interpretá-los à luz de uma utopia extrema de "reparação
histórica".
Latifúndio versus Povos Originais? A
narrativa caricatural ignora incontáveis nuances. O caso específico que
deflagrou o julgamento do STF envolve a ampliação da terra dos Xokleng, em
Santa Catarina, um grupo que sofreu um bárbaro massacre perpetrado por
bugreiros em 1904. A terra indígena ampliada abarcaria parte de uma reserva
biológica estadual e, ainda, área cultivada por colonos familiares. Detalhe: os
pequenos produtores têm propriedade legal de suas terras inscrita numa cadeia
temporal que se estende desde o século 19. Desapropriá-los equivaleria a um ato
de limpeza étnica.
A tese do "marco temporal" emana
do acórdão do STF sobre a apreciação da demarcação da Terra Indígena Raposa
Serra do Sol, em 2009. Os indígenas teriam direito certo apenas às terras que
ocupavam nas quais se encontravam na data de promulgação da Constituição de
1988. Hoje, o debate político e jurídico sobre a tese desenrola-se em torno de
posições irreconciliáveis.
De um lado, por meio de um projeto de lei
esperto, setores do agronegócio querem instrumentalizar o "marco
temporal" a fim de preservar propriedades obtidas via grilagem e
contestar, inclusive, demarcações já homologadas. Sem medo do ridículo, ignorando
os requisitos legais para o reconhecimento de terras indígenas, seus
porta-vozes difundem a "tese de Copacabana", isto é, o espantalho de
que regiões centrais das cidades correriam o risco de desapropriações decididas
pela Funai.
Do outro, os arautos da "reparação
histórica" almejam impugnar a propriedade legal ou a posse tradicional com
base em laudos antropológicos que conectem grupos indígenas atuais com terras
ocupadas, em algum momento, por seus ancestrais distantes. Bem longe de
Copacabana, nos planaltos sulistas ou na Amazônia, o conceito fundamentalista
expresso no voto de Edson Fachin geraria cortejos intermináveis de conflitos
fundiários.
O "marco temporal" de 1988
protege esbulhos perpetrados no contexto das políticas da ditadura militar de
construção de estradas de "integração nacional". Na ponta oposta, a
"reparação histórica" identitária abre caminho para novos esbulhos,
contra colonos sulistas ou caboclos ribeirinhos amazônicos.
O voto de Alexandre de Moraes desagradou às
posições polares e indicou, ainda que meio desajeitadamente, a necessidade de
uma solução equilibrada. Mas ficou isolado num tribunal rendido à polarização
política.
Verdade.
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