sábado, 16 de setembro de 2023

Eduardo Affonso - O Brasil é f...

O Globo

Para que funcione, o palavrão precisa manter afiado seu gume, preservada sua potência. Lâmina que muito se usa perde o fio

Há coisas que qualquer palavra nomeia ou traduz. Para as inefáveis e intraduzíveis, existe o palavrão.

Ele ajuda a aliviar a dor (por isso xingamos ao dar uma topada) ou a frustração (daí os estádios explodirem em imprecações diante do passe errado, do gol perdido). Isso acontece porque desbocar-se é uma forma de transgressão. Afrontar um tabu (sexo, religião, escatologia) aumenta o nível de estresse e gera uma descarga de adrenalina que nos deixa mais aptos a enfrentar um perigo — ou a fugir dele. Ao desafiar a moral, o palavrão levanta o moral. E, frequentemente, substitui a agressão física. Bem-aventurado o que atribui a profissão mais antiga do mundo à genitora de quem lhe deu uma fechada no trânsito, pois isso sacia (em parte) sua sede de vingança e evita que retribua a barbeiragem na mesma moeda.

O palavrão tem outro superpoder: a polissemia. Um dos nomes vulgares da genitália masculina pode exprimir também admiração, entusiasmo e evocar algo excelente, sensacional. Um dos que designam a profissional do sexo adquire caráter hiperbolizante, no mesmo sentido. Longe de ofender, será um elogio e tanto: “É uma puta atriz, com uma atuação do caralho”.

Mas, para que funcione, o palavrão precisa manter afiado seu gume, preservada sua potência. Lâmina que muito se usa perde o fio: o calão depende da excepcionalidade e do interdito para surtir efeito. Tente gritar “livro!” ao esmagar o dedo do pé na quina do móvel ou, no auge de uma discussão, mandar alguém tomar água — e compare o resultado com os impropérios e obscenidades normalmente invocados nesses contextos.

Por isso o Ministério da Expressividade adverte: use com moderação.

Acometido do que Nelson Rodrigues chamou de “a doença infantil do palavrão”, o teatro abusou desse recurso para chocar a burguesia, saudosa das pequenas contravenções da quinta série e ávida por um simulacro de catarse. A maioria dos comediantes continua refém dessa fórmula para arrancar risadas, mas poucos a usam com o talento de um Juca Chaves.

Incapaz de lidar com críticas, a cantora Luísa Sonza tuitou:

— Marina Sena é foda, Jão é foda, Pabllo Vittar é foda, Iza é foda, Ludmilla é foda, Anitta é foda, Gloria Groove é foda, eu sou foda. Isso independe da opinião de vocês.

Aqui, o palavrão apenas denota pobreza vocabular, pretensão e arrogância. Compare-se com a maestria de Hilda Hilst: Sonhei penhascos/Quando havia o jardim aqui ao lado. /Pensei subidas onde não havia rastros. /Extasiada, fodo contigo/Ao invés de ganir diante do Nada.

Quando, de tão (mal) empregados, os palavrões atuais se naturalizarem, esvaziados de sua carga emocional — e surgirem outros, associados aos novos tabus que o politicamente correto tem se empenhado em criar —, talvez seja o caso de recuperar os que nos forem mais caros. Uma forma seria reabilitar o artifício puritano e hipócrita de usar apenas a inicial, seguida de reticências. Assim, diríamos que a campeã Ana Moser é foda e que Fufuca é f... — distinguindo o elogio do desdém. Ou, como cantou Caetano, que “a bossa nova é foda” — deixando o f... para a safra de artistas desconectados da realidade.

Quanto ao Brasil de Bolsonaro, Lula, Centrão, militância cega, anulação da Lava-Jato e fragilização da Ficha-Limpa... para esse, haja pontinhos.

 

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