O Globo
Para que funcione, o palavrão precisa
manter afiado seu gume, preservada sua potência. Lâmina que muito se usa perde
o fio
Há coisas que qualquer palavra nomeia ou
traduz. Para as inefáveis e intraduzíveis, existe o palavrão.
Ele ajuda a aliviar a dor (por isso xingamos ao dar uma topada) ou a frustração (daí os estádios explodirem em imprecações diante do passe errado, do gol perdido). Isso acontece porque desbocar-se é uma forma de transgressão. Afrontar um tabu (sexo, religião, escatologia) aumenta o nível de estresse e gera uma descarga de adrenalina que nos deixa mais aptos a enfrentar um perigo — ou a fugir dele. Ao desafiar a moral, o palavrão levanta o moral. E, frequentemente, substitui a agressão física. Bem-aventurado o que atribui a profissão mais antiga do mundo à genitora de quem lhe deu uma fechada no trânsito, pois isso sacia (em parte) sua sede de vingança e evita que retribua a barbeiragem na mesma moeda.
O palavrão tem outro superpoder: a
polissemia. Um dos nomes vulgares da genitália masculina pode exprimir também
admiração, entusiasmo e evocar algo excelente, sensacional. Um dos que designam
a profissional do sexo adquire caráter hiperbolizante, no mesmo sentido. Longe
de ofender, será um elogio e tanto: “É uma puta atriz, com uma atuação do
caralho”.
Mas, para que funcione, o palavrão precisa
manter afiado seu gume, preservada sua potência. Lâmina que muito se usa perde
o fio: o calão depende da excepcionalidade e do interdito para surtir efeito.
Tente gritar “livro!” ao esmagar o dedo do pé na quina do móvel ou, no auge de
uma discussão, mandar alguém tomar água — e compare o resultado com os
impropérios e obscenidades normalmente invocados nesses contextos.
Por isso o Ministério da Expressividade
adverte: use com moderação.
Acometido do que Nelson Rodrigues chamou de
“a doença infantil do palavrão”, o teatro abusou desse recurso para chocar a
burguesia, saudosa das pequenas contravenções da quinta série e ávida por um
simulacro de catarse. A maioria dos comediantes continua refém dessa fórmula
para arrancar risadas, mas poucos a usam com o talento de um Juca Chaves.
Incapaz de lidar com críticas, a
cantora Luísa Sonza tuitou:
— Marina Sena é foda, Jão é foda, Pabllo
Vittar é foda, Iza é foda, Ludmilla é foda, Anitta é foda, Gloria Groove é
foda, eu sou foda. Isso independe da opinião de vocês.
Aqui, o palavrão apenas denota pobreza
vocabular, pretensão e arrogância. Compare-se com a maestria de Hilda
Hilst: Sonhei penhascos/Quando havia o jardim aqui ao lado. /Pensei
subidas onde não havia rastros. /Extasiada, fodo contigo/Ao invés de ganir
diante do Nada.
Quando, de tão (mal) empregados, os
palavrões atuais se naturalizarem, esvaziados de sua carga emocional — e
surgirem outros, associados aos novos tabus que o politicamente correto tem se
empenhado em criar —, talvez seja o caso de recuperar os que nos forem mais
caros. Uma forma seria reabilitar o artifício puritano e hipócrita de usar
apenas a inicial, seguida de reticências. Assim, diríamos que a campeã Ana
Moser é foda e que Fufuca é f... — distinguindo o elogio do desdém. Ou, como
cantou Caetano, que “a bossa nova é foda” — deixando o f... para a safra de
artistas desconectados da realidade.
Quanto ao Brasil de Bolsonaro, Lula,
Centrão, militância cega, anulação da Lava-Jato e fragilização da
Ficha-Limpa... para esse, haja pontinhos.
Sensacional!
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