sábado, 9 de setembro de 2023

Eduardo Affonso - O hino oficial e o paralelo

O Globo

Nunca sabemos se um sonho intenso e um raio vívido vêm antes ou depois do amor eterno seja símbolo

Aproveitando este 7 de Setembro atípico, flopado — em que o governo pareceu pouco interessado em reaver os símbolos nacionais (indevidamente apropriados pela gestão anterior, com joias, relógios e valores conservadores) —, talvez fosse hora de aposentar o velho “Ouviram do Ipiranga” e assumir o novo hino.

Sim, gostamos de inflar o peito e murchar a barriga para, de pé, nos esgoelar em hipérbatos e proparoxítonas. Num brado retumbante, desafiamos mais que a própria morte: vamos de lábaros impávidos a flâmulas garridas, de fúlgidos penhores a límpidas clavas, sem atinar muito bem com o que estamos cantando.

Nunca sabemos se um sonho intenso e um raio vívido vêm antes ou depois do amor eterno seja símbolo (é de bom tom esperar que os outros decidam, então seguir o fluxo). Peça que expliquem essa letra — ou, pelo menos, a desentortem — e verá quantos fugirão à luta.

Tudo muda, entretanto, com o hino informal. Ali não há esplêndido colosso ou estrelado florão —apenas uma intensa, plácida e profunda declaração de amor: Quando eu digo que deixei de te amar/É porque eu te amo. /Quando eu digo que não quero mais você/É porque eu te quero.

Nada de contorcionismos sintáticos. É como se a Semana de 22 chegasse, finalmente, a 2023, e permitisse ao brasileiro dizer ao Brasil, em ordem direta: Eu tenho medo de te dar meu coração/E confessar que eu estou em suas mãos/Mas não posso imaginar o que vai ser de mim/Se eu te perder um dia.

Ali assumimos nossa bipolaridade política diante desta pátria-mãe nada gentil: Eu me afasto e me defendo de você/Mas depois me entrego. /Faço tipo, falo coisas que eu não sou/Mas depois eu nego.

Imagine o Maracanã lotado, cantando em uníssono, num jogo da seleção: Mas a verdade é que eu sou louco por você/E tenho medo de pensar em te perder. /Eu preciso aceitar que não dá mais/Pra separar as nossas vidas.

Ou ministros do STF, em solenidades oficiais, olhando nos olhos do presidente: E nessa loucura de dizer que não te quero/Vou negando as aparências/Disfarçando as evidências/Mas pra que viver fingindo/Se eu não posso enganar meu coração? /Eu sei que te amo.

Ninguém erraria a letra. Lulistas e bolsonaristas se irmanariam para entoar a seus semideuses: Eu entrego a minha vida/Pra você fazer o que quiser de mim.

O novo hino já vem sendo tocado, indistintamente, em churrascos, serestas, festivais, chás de revelação. O tecladista do Bruno Mars não resistiu. O embaixador da Coreia do Sul tampouco.

Nada contra a bela melodia de Francisco Manuel da Silva ou os tortuosos versos de Joaquim Osório Duque-Estrada. Mas feche os olhos e fantasie o auriverde pendão tremulando aos acordes de José Augusto e Paulo Sérgio Valle, enquanto pensamos na bossa nova, no Pasquim, na redemocratização, na seleção de 70, no Grande Sertão, no Plano Real, nas colunas do Palácio da Alvorada, em Dom Casmurro, em Dias Gomes, em Joãosinho Trinta, em Ayrton Senna, e declaramos ao Brasil: Diz que é verdade, que tem saudade/Que ainda você pensa muito em mim. /Diz que é verdade, que tem saudade/Que ainda você quer viver pra mim.

 

2 comentários:

  1. O colunista gosta de palavras, gosta de usá-las e de brincar com elas. Ele joga bem com elas, mas acho que tem pouco a dizer com elas. Muita aparência e pouco conteúdo, na minha opinião.

    ResponderExcluir