quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Felipe Salto* - As transições e a guerra fiscal na reforma

O Estado de S. Paulo

A reforma tributária poderá morrer por inanição ou, se realmente avançar, produzir um quadro ainda mais intrincado que o atual

Retomo o tema da reforma tributária. Na coluna do dia 20 de julho, apontei oito grandes desafios a serem enfrentados durante a tramitação da matéria no Senado. Posteriormente, avaliei dois pontos dessa lista – o Conselho Federativo e as exceções à alíquota de referência. No artigo de hoje, vou abordar a questão da transição prevista na reforma para a troca de tributos e a partilha de receitas do novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Em relação à primeira transição, pretendo abordar também os benefícios fiscais do ICMS.

A reforma tributária, de acordo com o texto aprovado na Câmara dos Deputados, pretende: 1) substituir três tributos sobre bens e serviços federais – Cofins, IPI e PIS – pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e por um imposto seletivo; e 2) trocar dois tributos sobre bens e serviços subnacionais – ICMS e ISS – pelo IBS.

Juntos, esses tributos arrecadaram 12,5% do PIB no período 2017-2021, sendo 4,6% do PIB de tributos federais e 7,8% do PIB de tributos subnacionais, cerca de 38% de tudo o que foi recolhido naqueles anos. De modo a não comprometer o financiamento do Estado, propõe-se uma transição, de 2029 a 2033, para a substituição do ICMS e do ISS pelo IBS.

Vale dizer, foram concedidos benefícios fiscais que em muitos Estados levaram à perda de mais de 20% da receita de ICMS. Para não prejudicar os investimentos feitos com base nesses incentivos, a reforma prevê um cronograma de redução progressiva das alíquotas do ICMS, bem como institui o Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais com recursos da União, destinado a compensar as empresas até 2032. Os aportes começarão com R$ 8 bilhões, em 2025, até chegar aos R$ 32 bilhões, em 2028, caindo progressivamente após 2029.

A substituição de Cofins, IPI e PIS pela CBS será rápida, no biênio 2026-2027, mas deveria também ser antecipada. Em 2024, espera-se que ocorra a aprovação das leis complementares previstas na reforma, de modo que a troca poderia começar já em 2025. Bem mais lenta é a transição da substituição do ICMS e do ISS pelo IBS. Terá início apenas em 2029 e, em 2032, último ano de existência desses impostos, as alíquotas ainda estarão em 60% do previsto na legislação.

É difícil de acreditar que esses impostos possam desaparecer de um dia para o outro, no início de 2033. Mais provável é a prorrogação da transição, pondo a perder o coração da reforma, isto é, o fim da guerra fiscal com tributação no destino das operações (consumo final).

Para ter claro, não se sabe exatamente o tamanho dos benefícios de ICMS nem com que rigor os requerimentos de compensação solicitados pelas empresas poderão ser analisados. Quem fará, aliás, esse escrutínio? A proposta em tramitação ainda estabelece que o risco da União não se restringe aos aportes feitos, se a necessidade de compensação ultrapassar esses prognósticos. A União, vale registrar, arcará também com o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, mediante aportes anuais de R$ 8 bilhões, em 2029, a R$ 40 bilhões, em 2033. Guerra fiscal a pleno vapor.

O que garante que o cronograma será mantido, a exemplo de prazo, gradação e sequência? Em particular, em 2032, as alíquotas de ICMS ainda estarão em 60% das previstas na legislação e o Fundo de Compensação e o Fundo de Desenvolvimento já terão recebido no acumulado R$ 160 bilhões e R$ 80 bilhões, respectivamente, num total de R$ 240 bilhões. Uma fábula, que representa verdadeira bomba fiscal para a União.

A outra transição é chamada federativa. Trata-se de uma questão restrita aos Estados e municípios, não envolvendo os contribuintes, como no caso da substituição de tributos. A questão, aqui, é a da distribuição da receita do IBS entre esses entes.

Ainda que se possa garantir que a receita da CBS seja igual à da Cofins, do IPI e do PIS somadas e que a receita do IBS seja igual à do ICMS e do ISS agregadas, a reforma necessariamente produzirá efeitos redistributivos entre os Estados e os municípios. Fato é que a apropriação do ICMS, promete-se, deixará de ser preponderantemente na origem para ser apenas no destino lá, em 2033.

Com o objetivo de garantir a estabilidade da receita dos Estados e municípios e um maior prazo para assimilar eventuais perdas, estabeleceu-se a ideia da transição federativa, de 2029 a 2078, lembrando que 2029 é o ano de início da substituição do ICMS e ISS pelo IBS. Neste período, a partilha da receita será inicialmente feita de modo a garantir a mesma receita que a proporcionada no período 2024-2028. Gradualmente, entretanto, a parcela distribuída de acordo com o destino crescerá de modo linear, até que seja o único critério em 2078.

Enfim, teremos uma transição de 2026 a 2032, quando se dará a substituição de tributos, e uma outra transição, bem mais longa, de 2029 a 2078, período no qual se caminhará progressivamente para a distribuição da receita do IBS no destino. É um longo processo sujeito a chuvas e trovoadas, somandose a outras questões espinhosas, como o Conselho Federativo e a alíquota de referência e suas exceções. A reforma poderá, na verdade, morrer por inanição ou, se realmente avançar, produzir um quadro ainda mais intrincado que o atual.

*ECONOMISTA-CHEFE E SÓCIO DA WARREN RENA, FOI SECRETÁRIO DA FAZENDA E PLANEJAMENTO DE SÃO PAULO E DIRETOR-EXECUTIVO DA IFI

 

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