quinta-feira, 14 de setembro de 2023

José Serra* - Orçamento, arcabouço e governabilidade de emendas

O Estado de S. Paulo

A nova proposta orçamentária mostra que não precisamos apenas de novos números, mas de novas práticas

O mês de setembro marcou o encaminhamento do primeiro projeto de lei orçamentária federal ao amparo do novo regime fiscal, sancionado no dia anterior pelo presidente da República. Não foi uma mera formalidade. O olhar sobre as contas públicas afeta a vida de todos os brasileiros e as desconfianças impuseram ao País que o Banco Central fixasse, sem muitas explicações, juros em níveis reais que beiram o insólito.

Pelo menos temos uma boa notícia, a maior barbaridade econômica da última década foi jogada na lata de lixo da história. O teto de gastos não governa mais a nossa política fiscal. Vale notar que o torniquete colocado nas despesas com saúde e educação perdeu eficácia, algo fundamental para que as políticas sociais voltem a exercer o seu potencial de transformação da economia e da sociedade brasileira.

Apesar de algumas boas notícias, não podemos deixar de lembrar que a aterrissagem na realidade vai demandar muito mais do que metas e gráficos de um novo arcabouço fiscal.

A nova proposta orçamentária mostra que não precisamos apenas de novos números, mas de novas práticas. Em verdade, é fundamental reciclar não somente o planejamento das ações da máquina pública, como também a forma como o Executivo e o Legislativo conduzem as decisões sobre a alocação de recursos orçamentários.

A proposta de orçamento chega ao Congresso Nacional com expansão de despesas primárias de R$ 129 bilhões, ante a execução estimada para 2023. No entanto, a programação não incluiu itens absolutamente essenciais: reajuste dos salários dos servidores federais, Bolsa Família e correção da tabela progressiva do Imposto de Renda. São aspectos politicamente sensíveis e compromissos de campanha do atual presidente. As ausências indicaram a provisoriedade da proposta e são terreno fértil para as suspeitas que o mercado financeiro manipula de forma tão desenvolta.

Mas falta mais. O governo federal precisa de R$ 168,5 bilhões em receitas que não estão garantidas. A mais expressiva é a mudança no Conselho

Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), já aprovada pelo Congresso, pela qual o governo volta a ter o voto de qualidade, prerrogativa perdida em 2020. A medida deve gerar R$ 98 bilhões. Chegar a uma estimativa de recursos a partir de um voto de qualidade é algo, digamos, surreal. Mas espero que dê certo.

A segunda grande aposta é a Medida Provisória 1.185/2023, recentemente publicada. Ela dá operacionalidade à vitória obtida pelo governo no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que possibilita a cobrança de tributos federais sobre benefícios concedidos pelos Estados em impostos de sua competência, quando não relativas a investimentos. A estimativa é de R$ 35,3 bilhões.

De resto, é a reposição de matérias que sempre estiveram na pauta e fracassaram pelo poder dos interesses em contrário. Elas vão desde o recolhimento antecipado de Imposto de Renda sobre os fundos fechados até a cobrança de impostos das offshores, passando por loterias e a revogação da dedutibilidade para juros sobre o capital próprio. Estranho que já não sejam questões equacionadas.

Salvo alguns efeitos colaterais, as medidas são corretas. O problema é o contexto em que vão ao Congresso Nacional. E aí não dá para fugir ao tema das emendas de parlamentares individuais e de bancada. No projeto de lei, foram reservados R$ 37,6 bilhões, mas se fala numa conta de até R$ 20 bilhões a mais. Só para ter um parâmetro comparativo, a complementação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) está orçada em R$ 46,9 bilhões.

Sem a expansão da receita esperada e com o déficit primário estimado em R$ 146 bilhões para 2023, não será revertido a um pequeno superávit primário (R$ 2,8 bilhões). Um fracasso maior poderá levar ao descumprimento da meta, incluída a banda de variação, dado que o novo arcabouço fiscal permite flutuação entre menos 0,25% e mais 0,25% do PIB em torno da meta.

As votações das medidas provisórias e a construção da peça orçamentária nunca serão desvinculadas. O Executivo federal acabou construindo o terreno mais propício para que a chantagem ocorra. Emendas parlamentares, receitas adicionais e cumprimento da meta fiscal passam a compor um mecanismo perverso de decisão sobre as finanças públicas.

Alguns dirão: “Esse é o jogo!”. Esse jogo, no entanto, está desestruturando o funcionamento da máquina pública, pervertendo as decisões do Legislativo e promovendo decisões fiscais de qualidade cada vez mais duvidosas.

O jogo democrático exige que os atores que ganharam representatividade pela via do voto tenham voz. Mas já passou da hora de submeter essas indicações de gasto a estruturas que tenham condições de realizar a avaliação da eficiência do gasto público. E isso deve valer para toda despesa.

Ainda tenho a esperança de que a tramitação do Orçamento deixe de ser apenas uma arena de luta por privilégios e se transforme no locus das decisões sobre a melhor forma de aplicar os recursos públicos de maneira eficaz.

*Economista

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