Folha de S. Paulo
Tratar como criminosa a mulher é uma violação
de sua dignidade
Não são braços nem pernas, boca nem olhos,
que fazem um ser humano. Uma pessoa pode perder todos eles e continuará pessoa.
Mas se perder seu cérebro, não. Isso porque as características que nos fazem
pessoas —capacidade de ter sensações, emoções, pensamento— vêm do sistema
nervoso.
Desde o momento da concepção, o embrião já é um organismo distinto da mãe, mas não é ainda uma pessoa. Só terá sensações como dor e prazer em estágios posteriores da gestação. Ele tem o potencial de se tornar uma pessoa (ou mesmo duas se o embrião se dividir), mas ainda não o é. Se tem ou não uma alma imortal foge ao Estado laico. Por isso, não deve receber a mesma proteção da lei.
A própria lei brasileira já não entende a
vida do embrião como equivalente ao ser humano já formado. Primeiro, porque a
pena para o aborto é
menor do que para homicídio. Segundo, porque permite o aborto em caso de
estupro da mãe. Seria monstruoso permitir o assassinato de um ser humano
inocente por causa do crime de seu genitor.
Não é só a lei. Ninguém na sociedade
considera, a sério, que um embrião ou um feto nos estágios iniciais seja já um
ser humano. É simples mostrar isso. No Brasil, temos clínicas de fertilização
in vitro (FIV). Nessas clínicas, embriões são criados em laboratório, alguns
são transferidos para o útero da mulher e
outros são congelados. Depois de um prazo estipulado em lei, esses são
descartados ou destinados à pesquisa. Mesmo sabendo disso, seguimos nossas
vidas normalmente. Nem o mais ardoroso oponente do aborto legal tenta impedir o
"assassinato" daqueles embriões congelados. No máximo, uma ínfima
minoria permanece na oposição puramente verbal à prática.
Agora imagine, por um momento, se uma clínica
rotineiramente matasse crianças já de 5 ou 6 anos. Um campo de extermínio
operando em pleno solo brasileiro. Todos, ao saber disso, iriam imediatamente
se mobilizar para impedir essa barbaridade, inclusive com violência contra os
carrascos, se necessário. Ao não tratar as clínicas de FIV da mesma maneira,
aqueles que juram de pés juntos ver no aborto um
assassinato mostram, por suas ações, que não é bem assim. Seus atos revelam
mais do que suas palavras. E está tudo bem.
É fato que mulheres que querem ser mães no
momento em que engravidam constroem uma relação com seu filho desde o estágio
embrionário. Mas essa construção diz muito mais sobre os adultos e suas
expectativas do que sobre a realidade atual daquele organismo. Amam-no já pelo
que ele será; dão-lhe um nome e atribuem a ele uma personalidade.
Mesmo a mulher que não quer engravidar sente
todo o peso da culpa que a cultura introjeta na recusa daquele embrião e da
incerteza quanto àquela escolha. Por isso quase nenhum aborto é uma decisão
fácil. Que 67% das mulheres que
abortam já sejam mães (Pesquisa Nacional do Aborto, 2021)
mostra como não há contradição essencial entre uma coisa e outra.
Tratar como criminosa a mulher que acabou de
tomar uma decisão dolorosa, por vezes sendo denunciada pelo médico que tem que
curá-la das consequências de um aborto malfeito devido a seu caráter ilegal e
ainda forçá-la a responder à polícia e à Justiça. Tudo isso é uma violação de
sua dignidade, justificada em nome de uma abstração que ninguém leva a sério na
prática.
A criminalização do aborto ameaça a vida, a
dignidade e o bem-estar de todas as mulheres, especialmente das mais vulneráveis.
Antes de 12 semanas, não há a menor questão de se estar lidando com uma vida
humana, com uma pessoa. Sendo assim, descriminalizar sua prática é uma garantia
de direito básico das mulheres. É da alçada do Supremo, portanto,
decidir sobre essa questão, como no passado já decidiu sobre o aborto de fetos
anencéfalos.
Devia deixar nascer os fetos anencéfalos.
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