Correio Braziliense
Bolsonaro capturou o apoio dos evangélicos ao
se opor às pautas identitárias da esquerda, que são vistas como uma ameaça à
preservação da família unicelular patriarcal
Teólogo católico maldito, Leonardo Boff é
um crítico dos fundamentalismos. Segundo ele, todos os sistemas culturais,
científicos, políticos, econômicos e artísticos que se apresentam como
portadores exclusivos da verdade e da solução única para os problemas são
fundamentalistas. Ex-frade franciscano, considerado um dos fundadores da
chamada Teologia da Libertação, suas críticas aos dogmas religiosos o levaram
ao confronto com Roma. Nascido em Santa Catarina, seu nome de batismo é Genézio
Darci Boff.
Os conceitos de Boff no livro Igreja, Carisma e Poder provocaram forte reação da Congregação para a Doutrina da Fé, então dirigida por Joseph Ratzinger, que viria a ser o Papa Bento XVI. Condenado ao “silêncio obsequioso”, Boff foi proibido de difundir suas ideias renovadoras sobre a relação da Igreja Católica com o povo, por colocar “em perigo a sã doutrina da fé”.
À época, os padres católicos que adotaram a
Teologia da Libertação criaram as chamadas comunidades eclesiais de base, que
estimulavam a população católica das periferias e grotões a lutarem por seus
direitos. Com a punição de Boff, os que defendiam suas ideias passaram a ser
isolados pela própria hierarquia da Igreja, o que acabou contribuindo para
afastar do catolicismo grande parcela da população pobre do nosso país.
O anticlericalismo da esquerda brasileira,
que estava sendo amortecido pelas comunidades eclesiais de base, voltou-se
contra a Igreja Católica, que havia desempenhado um importante papel na luta
contra o regime militar. Ao mesmo tempo, os setores mais conservadores do clero
ampliaram a sua influência. Essa visão anticlerical da esquerda é dogmática e
incapaz de compreender a importância da religião na vida da sociedade.
Desde sempre, os mitos e ritos religiosos
existem como forma de representação da nossa humanidade. Em diversos momentos,
foram fatores de profunda divisão, com guerras sangrentas, como aconteceu entre
católicos e protestantes e, hoje, ainda acontece entre muçulmanos sunitas,
xiitas e fundamentalistas. No século passado, por isso mesmo, os antropólogos
franceses passaram a dedicar muita atenção às religiões.
A antropologia das religiões parte da ideia
de que a humanidade e sua cultura são realidades complexas e precisam ser
estudadas com base em paradigmas mais científicos, para serem compreendidas e
respeitadas, como pensamento simbólico. Não são manifestações apenas
psicológicas, preenchem necessidades e revelam aspirações legítimas.
O antropólogo francês Lévi-Strauss, que
lecionou na Universidade de São Paulo, realizou uma notável pesquisa sobre as
estruturas de parentesco, ao estudar a vida dos índios nambiquaras, caingangues
e bororos, que ainda hoje é uma referência. Sua distinção entre a ordem vivida,
cuja base é a realidade objetiva, e a ordem concebida, que é a representação
dessa mesma realidade, é consagrada.
Evangélicos
É pacífico que a estrutura dos sistemas de
representações e práticas religiosas tendem a assumir a função de instrumento
de imposição e legitimação. O campo religioso não somente cumpre funções
estritamente religiosas, mas se vincula a demandas propriamente ideológicas. É
aí que os evangélicos levam vantagem. Desde quando os irmãos John e Charles
Wesley, clérigos anglicanos, inspirados em Martinho Lutero, impactados pela
extrema pobreza e as terríveis condições de saúde e de trabalho da Revolução
Industrial, concluíram que a religião deveria adotar uma mensagem de “santidade
social”, publicamente engajada nas questões sociais.
Os “evangelistas” passaram a levar a
mensagem cristã aos mercados, campos e casas. Acreditaram no poder da
transformação pessoal e social do cristianismo, combateram o tráfico de
escravos, defenderam a educação gratuita e ajudaram a organizar os sindicatos
ingleses. Seus seguidores passaram a se chamar metodistas. Com o tempo, essa
forma de atuação se tornou uma característica das diversas igrejas e
denominações evangélicas, sejam as mais tradicionais, sejam as pentecostais,
que ocuparam o espaço vazio deixado pela desmobilização das comunidades
eclesiais de base da Igreja Católica no Brasil.
Bolsonaro capturou o apoio da maioria dos
evangélicos ao se opor sistematicamente às pautas identitárias da esquerda, que
são vistas como um ameaça à preservação da família unicelular patriarcal. Esse
apoio foi consolidado por sua aliança com a bancada evangélica no Congresso, um
nó que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda tenta desatar. Esse apoio
evangélico explica em grande parte a resiliência eleitoral do ex-presidente da
República. Tem um viés antropológico, que a ciência política não explica.
A nova relação entre religião e política no
Brasil está muito cristalizada. A perda dos direitos políticos por oito anos e
o isolamento a que Bolsonaro está sendo submetido no Congresso, após a
tentativa de golpe de 8 de janeiro, não estão tendo o impacto que se imaginava
na sua base eleitoral. Bolsonaro ainda mantém grande capacidade de transferir
votos nas eleições municipais.
Mesmo o desgaste provocado pelo caso das
joias que recebeu de presente da Arábia Saudita, e resolveu passar nos cobres,
em vez de destinar ao patrimônio da União, ainda não abalou o prestígio popular
de Bolsonaro como seus adversários esperavam. De igual maneira, a
desmobilização dos radicais de extrema direita, cujos líderes estão sendo
investigados e punidos por causa das invasões do Palácio do Planalto, do
Congresso e do Supremo tribunal Federal (STF), também não desbaratou o bolsonarismo,
que continua muito ativo nas redes sociais.
Verdade.
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