Correio Braziliense
O Código Penal brasileiro, que criminaliza a
interrupção da gravidez, é da década de 1940 do século passado, quando as
mulheres tinham uma ‘cidadania de segunda classe'”, lembrou a presidente do STF
O conceito de “lugar de fala” ficou famoso
após a publicação do livro da filósofa paulista Djamila Ribeiro, O que é lugar
de fala, principalmente no movimento negro, sendo adotado como uma espécie de
atestado de legitimidade para qualquer tese identitária. Muitas vezes, é
desvirtuado e usado como um meio para desqualificar o interlocutor que não vive
o mesmo problema ou situação, com o argumento categórico do tipo “você não pode
falar sobre isso porque não tem lugar de fala”.
Djamila ampliou a questão do feminismo negro (Quem tem medo do feminismo negro?) na perspectiva de criticar e superar as cisões da sociedade causadas pelas desigualdades e pensar novos marcos civilizatórios. A partir do conceito de “lugar de fala”, a filósofa destaca as denúncias sobre a esterilização forçada de mulheres negras, na década de 1980, que resultaram numa comissão parlamentar de inquérito na Câmara dos Deputados, como uma espécie de gênese do feminismo negro no Brasil.
A esterilização forçada de mulheres nos
estertores do regime militar era uma forma de controle da natalidade, com
objetivo de limitar a taxa de crescimento da população aos níveis de expansão
da economia, ou seja, abaixo do Produto Interno Bruto (PIB), com o óbvio
propósito de mitigar as desigualdades sociais pela redução compulsória do
tamanho das famílias pobres, principalmente negras. Era uma violência contra
uma parcela da população que já era vítima, como continua sendo, do nosso
secular racismo estrutural.
A esterilização forçada era uma alternativa
autoritária ao direito ao aborto, questão que agora está sendo julgada pelo
Supremo Tribunal Federal (STF). Às vésperas de se aposentar, a presidente do
Corte, Rosa Weber, na sexta-feira, votou para que o aborto realizado até 12
semanas de gestação não seja mais considerado crime no país.
A ministra argumenta que a criminalização
fere direitos fundamentais das mulheres, como os direitos à autodeterminação
pessoal, à liberdade e à intimidade, porém reconhece que a discussão do aborto
“é uma das questões jurídicas mais sensíveis, porquanto envolve uma teia de
razões de segunda ordem de natureza ética, moral, científica, médica e
religiosa”.
No seu voto histórico, Rosa exerceu um duplo
lugar de fala: o de mãe e de guardiã da Constituição. Nessa condição,
argumentou que a proibição não é eficiente para evitar abortos, sendo mais
adequado políticas públicas de prevenção à gravidez indesejada, como educação
sexual. “A maternidade é escolha, não obrigação coercitiva. Impor a
continuidade da gravidez, a despeito das particularidades que identificam a
realidade experimentada pela gestante, representa forma de violência
institucional contra a integridade física, psíquica e moral da mulher,
colocando-a como instrumento a serviço das decisões do Estado e da sociedade,
mas não suas.”
Prerrogativas
O Código Penal brasileiro, que criminaliza a
interrupção da gravidez, é da década de 1940 do século passado, quando as mulheres
tinham uma “cidadania de segunda classe”, na expressão de Rosa. Nessa época, o
movimento feminista sequer havia entrado na sua “segunda onda” — o Brasil
estava em pleno Estado Novo. “Não tivemos como participar ativamente da
deliberação sobre questão que nos é particular, que diz respeito ao fato comum
da vida reprodutiva da mulher, mais que isso, que fala sobre o aspecto nuclear
da conformação da sua autodeterminação, que é o projeto da maternidade e sua
conciliação com todas as outras dimensões do projeto de vida digna”, sustentou
a presidente do Supremo. Hoje, o aborto é permitido em caso de gravidez por
estupro, risco para a vida da gestante e feto anencéfalo (sem cérebro).
A votação será retomada quando o novo
presidente da Corte, Luis Roberto Barroso, decidir dar continuidade ao
julgamento, cujo desfecho ainda é imprevisível. Além de Rosa, Barroso, Cármem
Lúcia e Édson Fachin são ministros a favor da descriminalização. Os ministros
Nunes Marques e André Mendonça, indicados por Bolsonaro, votarão contra. A
decisão final dependerá dos ministros Gilmar Mendes, Luiz Fux, Dias Toffoli,
Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin.
Há uma polêmica sobre a competência de rever
o dispositivo que proíbe o aborto no Código Penal de 1940: caberia ao Congresso
ou ao Supremo? Os que são contra o aborto argumentam que a atribuição é do
Legislativo, hoje majoritariamente conservador e sob forte influência dos
evangélicos, que podem, inclusive, vir a eleger um bispo licenciado da Igreja
Universal para a presidência da Câmara, o deputado Marcos Pereira (SP),
presidente nacional dos Republicanos.
Rosa contestou esse argumento: “Assim como em
praticamente todas as democracias liberais (com raras exceções das democracias
puramente majoritárias), também na democracia brasileira a função de controlar
as leis e atos do poder público para garantir que elas estejam em conformidade
com a Constituição é exercida por órgão independente daqueles responsáveis por
aprovar as leis. Este órgão é tipicamente uma Suprema Corte ou Tribunal Constitucional.
Isso é importante porque a democracia não se resume à regra da maioria. Na
democracia, os direitos das minorias são resguardados, pela Constituição,
contra prejuízos que a elas (minorias) possam ser causados pela vontade da
maioria.”
Voto corajoso da ministra.
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