domingo, 24 de setembro de 2023

Luiz Sérgio Henriques* - Contra a lógica das guerras frias

O Estado de S. Paulo

Além de reafirmar o lugar do trabalho nas sociedades de informação, Biden e Lula demonstram saber que é preciso atrair os que se sentem deixados de lado na globalização

Para os adeptos de choques frontais, a passada guerra fria terá sido uma época dourada cujos cacoetes e hábitos mentais carregarão pela vida afora. De fato, capitalismo e comunismo se enfrentavam como sistemas quase fechados e antagônicos num jogo de soma zero. A passagem de um país ao “campo socialista” era uma perda irreversível para o que se chamava de mundo livre, prenunciando um catastrófico efeito dominó, uma vez que outras peças logo seriam derrubadas num movimento sem volta. E posições como a dos não alinhados patinavam sem maior identidade, em busca de uma jamais bem definida via não capitalista de desenvolvimento.

Os atores desse drama tiveram sua dose de razão, quando menos até o ponto em que a rivalidade russo-chinesa, estrategicamente explorada por Nixon-Kissinger, fragmentou o tal campo socialista. Mas antes disso, bem menos visível, a derrota daquele comunismo estava como que inscrita nas coisas. Não importa, aqui, o impacto geral da Revolução

Russa, inclusive na vitória sobre o nazismo e no aprofundamento das democracias ocidentais – o fato é que, com as estruturas moldadas pelo stalinismo, a batalha propriamente hegemônica estava desde logo perdida. De um ponto de vista civilizatório, eram pouco atraentes um partido-Estado absoluto e uma sociedade civil vigiada, incapaz de pensar e agir por conta própria.

No entanto, simultaneamente ao malogro da URSS, a longa marcha do socialismo de Estado chinês não se deteve, fazendo com que os partidários da confrontação passassem a deslocar a data mágica da ruptura de 1917 para 1949. De fato, enquanto o sistema soviético se mostrava incapaz de se atualizar tecnologicamente, a não ser no âmbito militar, com as reformas de mercado da era Deng Xiaoping a China Popular demonstraria dinamismo crescente. Chegada a hora da globalização, estava pronta para aproveitar as possibilidades que esta lhe abria, integrando-se à economiamundo e dando lastro e rosto à mencionada via não capitalista, ao menos no plano das intenções e das justificativas.

O mundo que agora habitamos é qualitativamente novo, com riscos e perigos inéditos. Há todo um léxico recentíssimo – desacoplagem, near e friendshoring, etc. – que busca dar conta do grave recuo da integração das economias e, portanto, do seu caráter tendencialmente cosmopolita. O conflito entre a potência dominante e a potência emergente parece caber como uma luva no modelo estabelecido pela multissecular “armadilha de Tucídides”. E os focos de guerra ou já estão acesos, como na bárbara invasão da Ucrânia, ou podem surgir de uma hora para outra.

Os mais recentes guerreiros frios apregoam, de um lado, a decadência do Ocidente, incapaz de reviver o heroísmo da sua fase formativa e já definitivamente entregue à dissolução moral. De outro, na nossa margem do mundo, afirmam uma contraposição pura e dura entre democracia e autocracia, como se nossas democracias, elas mesmas, não estivessem sofrendo com a perda do centro de gravidade e a consequente difusão dos extremismos de tipo nacional-populista, de que Donald Trump é a face mais ameaçadora.

Expressão imperfeita, mas ainda assim essencial, do cosmopolitismo da política, a ONU é um desses palcos cuja quarta parede termina por ser explicitamente devassada por um público global. O que lá se passa tem dimensão simbólica evidente. Líderes políticos não são propriamente teóricos – e raramente convém que o sejam, sob o risco de nos virmos sob a mão pesada de guias geniais –, mas o que dizem tem importância e significação. Com oscilações e ambiguidades, apresentam em cena aberta sentimentos e aspirações profundos. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, deu oportuna indicação, ao apontar a desigualdade como a fonte decisiva do conflito moderno e, ao mesmo tempo, celebrar a democracia (política) como o meio por excelência para vencê-la e também superar “o ódio, a desinformação e a opressão”.

Associando a luta pela igualdade e a democracia política como terreno privilegiado desta mesma luta, o presidente brasileiro afasta-se, afortunadamente, tanto dos “aventureiros de extrema direita”, que menciona, quanto dos de extrema esquerda, que por lapso não menciona. Na mesma viagem, precioso o encontro com o presidente Joe Biden, em que os direitos do trabalho na reconfiguração da economia foram colocados no centro das preocupações do democrata e do petista. Não é de hoje que a esquerda brasileira precisa descobrir vida inteligente entre os liberals norte-americanos, arquivando clichês sobre o imperialismo e descobrindo formas de cooperação.

Além de reafirmar o lugar do trabalho nas sociedades de informação, os dois presidentes demonstram saber que é preciso atrair os que se sentem deixados de lado na globalização. Trata-se de compromissos que, adotados com coerência, contêm elementos essenciais daquela disposição hegemônica para dar conteúdo social a todas as democracias, revigorar as respectivas sociedades civis e projetá-las como capazes de superar pacificamente novas e antigas autocracias.

*TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL

 

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