O Globo
Na maior anistia da história, políticos dão
sinal verde para festa com o fundo eleitoral
O Brasil está prestes a testemunhar o maior
perdão de sua história. Não, não é o perdão de Lula ao
ministro do Supremo Dias Toffoli,
que embarreirou a ida do ex-presidente ao velório do irmão. Esse, ao que tudo
indica, não virá tão cedo, apesar dos serviços
inestimáveis do ministro ao presidente.
A anistia generosa, ampla e irrestrita que
vem por aí foi orquestrada na Câmara dos
Deputados e, na prática, desmantela o sistema de fiscalização
dos gastos eleitorais com o dinheiro público — R$ 6 bilhões só em 2022 e mais
de R$ 23 bilhões entre 2018 e 2023.
O pacote, que está sendo votado em regime de urgência, a tempo de valer já para a eleição municipal de 2024, estabelece que nenhum partido ou fundação deverá ser punido por irregularidades ou falta de prestação de contas, a menos que fique comprovado que o dinheiro público foi usado em benefício de um dirigente.
Também são perdoados todos os que não
cumpriram a cota de candidaturas de negros e mulheres nas eleições de 2022.
Além disso, a prestação de contas parcial,
em que os candidatos detalham gastos antes da eleição, deixará de existir. Com
isso, perderemos a única chance de acompanhar como os candidatos gastam o
recurso público durante a campanha.
Pela proposta, também não fica mais
inelegível quem contribuir para situações que violem “os deveres de
honestidade, de imparcialidade e de legalidade” contra a administração pública,
como prevê a Lei da Ficha Limpa.
A lista é comprida, mas por aí já dá para
ter uma ideia de como capricharam os relatores Antonio Carlos Rodrigues (PL-SP)
e Danielle Cunha (União-RJ). Os dois têm suas próprias questões com regras
eleitorais. Rodrigues ficou preso por um mês em 2017 por ordem da Justiça
Eleitoral, depois que um delator da J&F disse ter dado dinheiro a sua
campanha no caixa dois.
Dani Cunha é filha de Eduardo Cunha.
Por ter sido cassado em 2016 (e em tese estar inelegível), a candidatura dele a
deputado federal foi contestada no Tribunal Regional Eleitoral de SP em 2022.
Ao final, ele conseguiu ser candidato, mas não se elegeu.
Rodrigues e Dani, porém, são apenas a face
pública do esforço concentrado. O grupo de trabalho que elaborou os textos é
coalhado de dirigentes partidários e líderes de bancada, um indicador da
prioridade que a Câmara dá ao tema.
O próprio presidente, Arthur Lira (PP-AL),
acompanha tudo de perto. Logo ele, que no final de julho, diante da bancada do
“Roda Viva”, negou que fosse haver um “liberou geral”:
“Primeiro, nós não vamos ter nenhuma
facilidade para esses gastos absurdos que determinados partidos tiveram com
suas contas. (...) Não vamos mexer na questão de cota de gênero. Não vai ter
desatino”, disse. “Vamos esperar o texto que a Comissão Especial vai aprovar e
aí discutimos se isso vai trincar o meu legado”.
Hoje, tudo o que Lira disse que não estaria
no projeto está lá. Mesmo assim, não há sinal de que ele considere que isso
prejudicará seu legado.
Um dos temas que mais o empolgam é
protestar contra a “criminalização da política”, que ele define como herança da
Lava-Jato. Para Lira, foi a operação — e não a profusão de crimes cometidos por
políticos — que abalou a representatividade das instituições.
“Transformaram denúncias que precisavam ser
apuradas sob o manto da lei em verdadeiras execuções públicas”, disse no
discurso de posse.
A plataforma de Lira para lidar com o
problema é claríssima e vem sendo executada com apoio de todo o espectro
partidário. Para acabar com a criminalização da política, basta esculhambar as
leis que definem os crimes. Se acabarem com os crimes, quem será criminalizado?
Assim foi com o relaxamento da lei de
improbidade administrativa, em 2022, passando pelo projeto de Dani Cunha para
“proteger” políticos e até laranjas de “discriminação” e,
agora, pela maior anistia eleitoral já proposta na História do Brasil.
Nas eleições de 1989, quando Paulo César
Farias operou um dos maiores esquemas de caixa dois de que se tinha notícia até
então, para Fernando
Collor de Mello, não havia regras de financiamento eleitoral,
arrecadação de recursos ou controle das despesas.
Depois do escândalo, o Congresso propôs uma
lei que visava a moralizar a situação, mas era cheia de brechas. As empresas
ainda podiam gastar até 2% do faturamento com doações, e nenhum candidato
precisava entregar declaração de bens à Justiça Eleitoral. Foram, então,
perguntar a opinião de PC.
“A hipocrisia continua”, disse ele. “Vai
ser uma festa”.
PC já morreu faz tempo. Mas aposto que, se
estivesse assistindo aos movimentos do Congresso, repetiria o diagnóstico.
Pois é.
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