domingo, 10 de setembro de 2023

Marcos Lisboa* - Reforma Tributária

Folha de S. Paulo

Grupos de pressão pressionam senadores com informações incompletas, para obter privilégios que trarão prejuízo a toda a sociedade

Anda difícil o debate sobre a Reforma Tributária no Senado. Grupos de interesse demandam regras especiais para pagar menos impostos, por vezes se valendo de argumentos que contam apenas parte da história.

O receio é que essas pressões sejam bem-sucedidas, o que vai aumentar a carga tributária a ser cobrada dos demais bens e serviços. Privilégios para alguns implicam prejuízos para o restante da sociedade.

Setores da agricultura pedem benefícios ainda maiores do que os obtidos na tramitação na Câmara. O mesmo ocorre com a aviação. A eles se somam advogados e profissionais liberais.

Por que mesmo essas empresas devem ter tratamento privilegiado, obrigando os demais a pagar uma carga tributária maior?

Cabe destacar outros pontos, pouco enfatizados pelos grupos que demandam tratamento privilegiado.

Primeiro, a reforma deixa de fora o regime do Simples, que contempla pequenas empresas.

Isso significa que a demanda por menor carga tributária decorre de grupos com elevado faturamento, acima de R$ 4,8 milhões de reais por ano.

Em segundo, muitos parecem não entender os detalhes da reforma. Ela beneficia muitas empresas que vendem para outras empresas.

No regime atual, o gasto com diversos fornecedores não pode ser deduzido da base de cálculo da tributação das empresas que adquirem esses itens ou serviços. Com a reforma, todos as despesas com fornecedores passarão a poder ser deduzidas da base a ser tributada.

Logo, para as empresas à frente na cadeia produtiva, comprar desses fornecedores ficará mais barato, podendo o vendedor cobrar um preço mais alto.

Os grupos de pressão frequentemente ignoram o chamado "resíduo tributário". Eles apresentam o quanto diretamente pagam de tributos e o quanto vão pagar após a reforma.

Mas essa comparação não conta a história inteira. Os bens e serviços comprados pelas empresas estão inflados por tributos que incidem sobre os bens e serviços que compram. A comparação teria que considerar todos os tributos pagos pelos fornecedores, e dos fornecedores dos fornecedores, e assim por diante.

A atual carga tributária que incide sobre as empresas é bem maior do que os grupos de pressão argumentam.

Com frequência, a defesa por regimes tributários privilegiados afirma que eles trariam benefícios sociais. Esse é o caso da cesta básica. Existe a dificuldade óbvia de definir o que seria uma "cesta básica", e os exemplos anedóticos das distorções têm sido temas da imprensa.

Peixe entra na cesta básica, e salmão é peixe. O benefício acaba por afetar igualmente ovas de peixe. Existe um problema adicional. A desoneração da cesta básica beneficia todos que os adquirem, sejam pobres ou ricos.

Se a preocupação é proteger os mais pobres, bem mais eficaz é tributar a cesta básica e transferir os recursos arrecadados para os mais pobres, por exemplo, ampliando o Bolsa Família. Segundo estimativa do Ministério da Fazenda em 2017, essa alternativa traz uma redução na desigualdade de renda 12 vezes maior que a criada pela desoneração da cesta básica.

Esse é um fato bem documentado nas pesquisas com microdados em diversas áreas. A política social por meio do gasto é bem mais eficaz para cuidar dos grupos carentes do que distorções na tributação sobre consumo.

Os mais pobres frequentam escolas públicas e utilizam o SUS. Os mais ricos podem descontar seus gastos com educação e saúde do Imposto de Renda. Mesmo assim, hospitais e escolas privadas demandam ficar fora da tributação sobre consumo.

Muitos dos serviços consumidos pela classe média estão no regime do Simples, que não será alterado.

A reforma cria uma estrutura simples de tributação após a transição. O Imposto de Valor Agregado (IVA) tem por objetivo cobrar a mesma alíquota sobre qualquer decisão de consumo.

O IVA é um tributo cobrado ao longo da cadeia produtiva. No jargão adotado em outros países, as firmas recolhem progressivamente o imposto que é devido pelos consumidores.

A cada etapa, cobra-se a mesma alíquota sobre o valor adicionado, essencialmente folha de pagamentos e lucros. Pode-se demonstrar que isso é equivalente a cobrar a mesma alíquota sobre a decisão final de consumo das famílias.

Uma das vantagens dessa forma de cobrança é desestimular a sonegação. Em cada etapa, as firmas calculam a diferença entre todas as notas fiscais do que vendaram e deduzem todas as notas fiscais do que compraram. A alíquota incide então sobre a diferença, que é precisamente o valor que foi adicionado naquela etapa.

O IVA tem outros benefícios. Primeiro, se adequadamente implementado é bastante simples, ao contrário das complexas regras de tributação sobre consumo que temos atualmente.

Em segundo, ele é justo. Todos os setores da economia são igualmente tributados ao vender bens e serviços para o consumo das famílias.

Em terceiro, trata-se da regra de tributação sobre consumo que menos prejudica a produtividade e o bem-estar da maioria. Esse ponto foi discutido no artigo "Reforma Tributária resolve problemas crônicos de ineficiência ", publicado nesta Folha em 7 de julho deste ano.

Semana passada, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprovou a isenção de IPI para caminhões destinados à agricultura. O objetivo é estimular o setor. Só esquecem que a conta será repassada para as demais atividades produtivas, prejudicando-as.

A regra tributária sobre o consumo deveria ser a mesma para todos os setores. Cabe à política social, por meio dos seus gastos, cuidar das famílias mais vulneráveis.

O Senado poderia ser menos suscetível à pressão de grupos organizados de empresários e de profissionais liberais. Alguns não sabem bem do que estão falando. Outros sabem e estão apenas tentando obter um privilégio a mais.

*Economista, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula)

 

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