sábado, 23 de setembro de 2023

Pablo Ortellado -Argentina, ‘eu sou você amanhã’

O Globo

Milei tem toda a chance de ganhar e, se vocês descuidarem, ele leva no primeiro turno

Dentro de um mês, a Argentina realizará eleições presidenciais. Na maior parte das pesquisas, o favorito é Javier Milei, o outsider libertário e antissistema que pretende dolarizar a economia, endurecer o combate ao crime e lutar contra a ideologia de gênero. Em alguns sentidos, ele não é Bolsonaro, mas as semelhanças entre os dois não são pequenas. Como Bolsonaro, é um outsider, não tem partido, discursa contra as elites e promete virar o país do avesso, mudando tudo isso que está aí.

Nos anos 1980, uma propaganda de TV da vodca Orloff consagrou o bordão “eu sou você, amanhã”. Nela, um consumidor vindo do futuro orientava a versão dele do presente a escolher uma boa marca de vodca a fim de evitar a ressaca. Devido ao bordão, a expressão “efeito Orloff” terminou consagrada na análise política e econômica daqueles anos para se referir a um certo espelhamento entre Brasil e Argentina. Tudo o que acontecia lá, um tempo depois acontecia aqui. Ou vice-versa. Agora, parece que temos um efeito Orloff com a Argentina seguindo a rota política do Brasil com atraso de quatro anos. Como somos eles, amanhã, queria oferecer quatro esclarecimentos para certas convicções de nossos vizinhos portenhos — falando direto do futuro.

Milei não tem chance de ganhar

Milei tem toda a chance de ganhar e, se vocês descuidarem, ele leva no primeiro turno. Quando Bolsonaro começou a despontar no primeiro semestre de 2018, nós também o desprezamos e o tratamos como um fenômeno passageiro arbitrário, uma espécie de ruído estatístico. Deveríamos ter aprendido com o Trump nos Estados Unidos. Aproveito para lembrá-los de que os institutos de pesquisa estão com os instrumentos descalibrados e que, no mundo todo, sistematicamente subestimam o voto na extrema direita — não sabemos bem por quê. Não estamos voando às cegas, mas perdemos a precisão dos instrumentos.

O voto em Milei é um voto de protesto, sem sentido

Não, não é. Em 2018, muitos de nós pensávamos que o eleitor, cansado dos escândalos de corrupção, tinha dado um voto de protesto no candidato mais desqualificado, só para mostrar o dedo médio ao sistema político. Estávamos errados. Bolsonaro tinha uma mensagem, e essa mensagem encontrava respaldo em amplos setores da sociedade brasileira. Hoje ninguém mais duvida de que exista um conservadorismo com enraizamento social no Brasil. Milei também tem uma mensagem que encontra ressonância entre os argentinos. Quanto antes vocês entenderem esse apelo, mais rápido poderão tentar oferecer uma resposta alternativa.

Milei não tem partido, não vai conseguir governar

Se eleito, Milei provavelmente conseguirá governar. Se prestarem atenção às referências razoavelmente respeitosas que ele faz a setores da coalizão Juntos por el Cambio (de centro-direita), especialmente ao ex-presidente Mauricio Macri, verão que não é difícil conceber uma composição política com as forças de direita do establishment. Aqui também pensávamos que Bolsonaro implodiria a relação entre Executivo e Legislativo. No final, os grandes partidos do Centrão se acomodaram a Bolsonaro. Agora, fiquem alertas. Nessa acomodação, Milei não se moderará, é o establishment que se deslocará à extrema direita.

Milei vai destruir o Estado! Vou perder meu emprego!

Che, boludo, ¡cálmate! O Estado é um transatlântico, e qualquer mudança é lenta, difícil e parcial. Ninguém consegue dar um cavalo de pau. Na campanha eleitoral brasileira de 2018, o futuro ministro da Economia de Bolsonaro prometeu vender todas as estatais e arrecadar R$ 1 trilhão. No final, o governo conseguiu apenas privatizar a Eletrobras e algumas subsidiárias da Petrobras. O saldo foi relativamente pequeno. Milei prometeu fechar o Conicet, o CNPq argentino e, com isso, desempregar todos os cientistas e grande parte dos professores universitários. É bem pouco provável que consiga. Porém ele pode — e provavelmente vai — tornar bem difícil a vida de acadêmicos, artistas e cientistas.

Falando do futuro, quero dizer aos argentinos que Milei pode vencer, mas sua vitória não precisa ser o fim dos tempos. A democracia não é muito diferente na Argentina e no Brasil. Aí também há instrumentos para conter os excessos da extrema direita. Às vezes, um bom susto ajuda a gente a dar valor ao fundamental. Meus votos de boa sorte!

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