O Globo
Milei tem toda a chance de ganhar e, se vocês
descuidarem, ele leva no primeiro turno
Dentro de um mês, a Argentina realizará eleições presidenciais. Na maior parte das pesquisas, o favorito é Javier Milei, o outsider libertário e antissistema que pretende dolarizar a economia, endurecer o combate ao crime e lutar contra a ideologia de gênero. Em alguns sentidos, ele não é Bolsonaro, mas as semelhanças entre os dois não são pequenas. Como Bolsonaro, é um outsider, não tem partido, discursa contra as elites e promete virar o país do avesso, mudando tudo isso que está aí.
Nos anos 1980, uma propaganda de TV da vodca
Orloff consagrou o bordão “eu sou você, amanhã”. Nela, um consumidor vindo do
futuro orientava a versão dele do presente a escolher uma boa marca de vodca a
fim de evitar a ressaca. Devido ao bordão, a expressão “efeito Orloff” terminou
consagrada na análise política e econômica daqueles anos para se referir a um
certo espelhamento entre Brasil e Argentina. Tudo o que acontecia lá, um tempo
depois acontecia aqui. Ou vice-versa. Agora, parece que temos um efeito Orloff
com a Argentina seguindo a rota política do Brasil com atraso de quatro anos.
Como somos eles, amanhã, queria oferecer quatro esclarecimentos para certas
convicções de nossos vizinhos portenhos — falando direto do futuro.
Milei não tem chance de ganhar
Milei tem toda a chance de ganhar e, se vocês
descuidarem, ele leva no primeiro turno. Quando Bolsonaro começou a despontar
no primeiro semestre de 2018, nós também o desprezamos e o tratamos como um
fenômeno passageiro arbitrário, uma espécie de ruído estatístico. Deveríamos
ter aprendido com o Trump nos Estados Unidos. Aproveito para lembrá-los de que
os institutos de pesquisa estão com os instrumentos descalibrados e que, no
mundo todo, sistematicamente subestimam o voto na extrema direita — não sabemos
bem por quê. Não estamos voando às cegas, mas perdemos a precisão dos
instrumentos.
O voto em Milei é um voto de protesto, sem
sentido
Não, não é. Em 2018, muitos de nós pensávamos
que o eleitor, cansado dos escândalos de corrupção, tinha dado um voto de
protesto no candidato mais desqualificado, só para mostrar o dedo médio ao
sistema político. Estávamos errados. Bolsonaro tinha uma mensagem, e essa
mensagem encontrava respaldo em amplos setores da sociedade brasileira. Hoje
ninguém mais duvida de que exista um conservadorismo com enraizamento social no
Brasil. Milei também tem uma mensagem que encontra ressonância entre os
argentinos. Quanto antes vocês entenderem esse apelo, mais rápido poderão
tentar oferecer uma resposta alternativa.
Milei não tem partido, não vai conseguir
governar
Se eleito, Milei provavelmente conseguirá
governar. Se prestarem atenção às referências razoavelmente respeitosas que ele
faz a setores da coalizão Juntos por el Cambio (de centro-direita),
especialmente ao ex-presidente Mauricio Macri, verão que não é difícil conceber
uma composição política com as forças de direita do establishment. Aqui também
pensávamos que Bolsonaro implodiria a relação entre Executivo e Legislativo. No
final, os grandes partidos do Centrão se acomodaram a Bolsonaro. Agora, fiquem
alertas. Nessa acomodação, Milei não se moderará, é o establishment que se
deslocará à extrema direita.
Milei vai destruir o Estado! Vou perder meu
emprego!
Che, boludo, ¡cálmate! O Estado é um
transatlântico, e qualquer mudança é lenta, difícil e parcial. Ninguém consegue
dar um cavalo de pau. Na campanha eleitoral brasileira de 2018, o futuro
ministro da Economia de Bolsonaro prometeu vender todas as estatais e arrecadar
R$ 1 trilhão. No final, o governo conseguiu apenas privatizar a Eletrobras e
algumas subsidiárias da Petrobras. O saldo foi relativamente pequeno. Milei
prometeu fechar o Conicet, o CNPq argentino e, com isso, desempregar todos os
cientistas e grande parte dos professores universitários. É bem pouco provável
que consiga. Porém ele pode — e provavelmente vai — tornar bem difícil a vida
de acadêmicos, artistas e cientistas.
Falando do futuro, quero dizer aos argentinos que Milei pode vencer, mas sua vitória não precisa ser o fim dos tempos. A democracia não é muito diferente na Argentina e no Brasil. Aí também há instrumentos para conter os excessos da extrema direita. Às vezes, um bom susto ajuda a gente a dar valor ao fundamental. Meus votos de boa sorte!
Excelente! Os argentinos correm o risco de conhecer de perto o fundo do fundo do poço.
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ResponderExcluirExatamente!
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