Folha de S. Paulo
Vizinho ora influencia menos o Brasil, mas
crise por lá vai ser ainda mais grave
Os brasileiros mais ricos se divertem com a
crise argentina,
literalmente. Todo mundo sabe que, dada a desvalorização do peso, ficou barato
fazer turismo nos vizinhos. De resto, não se dá muita atenção ao que se passa
por lá.
Javier Milei rendeu
um fogo de palha no noticiário. A crise aparece mais na forma de bife de
chorizo e vinho barateados pelo colapso da moeda, ou o que passa por isso na
Argentina.
Os argentinos, porém, estão correndo para o precipício em um mato, sem cachorro. A parte mais aparente da crise, a superinflação, pode descambar em híper. Um ajuste macroeconômico provocaria, de início, uma nova e grande recessão, com mais desemprego, mais desvalorização, corte de subsídios sociais etc., para começar. Difícil imaginar como a economia possa escapar desses dois destinos (isto é, ficar apodrecendo no mato, sem cachorro).
A inflação mensal
de agosto foi de 12,4%, duas vezes e meia a inflação prevista para este ano
inteiro no Brasil. Em 12 meses, a
inflação acumulada é de 124,4%. A previsão mais otimista é de alta de uns
160% nos preços ao consumidor ao final deste 2023. As piores, por ora, estão na
faixa de 200%.
O país não sofre com uma inflação tão alta
assim desde o ano de 1990. Mesmo na crise de 2002, depois do fim da paridade,
da conversibilidade peso/dólar e tudo mais, a alta de preços foi de 41%.
A aceleração inflacionária vem desde 2017,
quando a taxa foi de 25%. No ano passado, de 95,2%. Dos países maiores da América
Latina, além da Venezuela, fora do mapa, é de longe a maior. Chile e
Colômbia tiveram inflações ruins no ano passado, em torno de 13%, mas passou.
Desde o começo do ciclo mais recente de
degradação econômica da região, em 2014, a Argentina teve dos piores
desempenhos, ainda pior que o do Brasil. O PIB (renda) per capita caiu 6,2%. O
do Brasil, 4,4%. O da Colômbia cresceu 16,2%. Chile, 7,9%. Dois países maiores,
só não foi pior do que a falecida Venezuela e o dolarizado Equador. Neste ano,
a renda per capita argentina deve encolher mais uns 3,5%, prejudicada ainda
pelo desastre na safra de grãos.
A fim de começar a pensar no que fazer da
vida, a Argentina precisa fazer consertos na fundação da casa. Precisa ter uma
moeda, para o que o governo precisa parar de se financiar por meio de inflação,
o que implica um acerto de contas públicas muito maior do que o do Brasil.
Precisa parar de controlar fluxo de capitais (embora alguns economistas ditos
heterodoxos no Brasil discordem), de tabelar o dólar, de controlar preços
—precisa permitir um ajuste grande de preços relativos, o que vai doer. Mesmo
se fizer tudo isso, não se sabe se vai reaver a confiança econômica básica
necessária para ter moeda e mercado doméstico de dívida pública, caloteada a
torto e a direito.
Precisa de um pacotão do FMI ou coisa que o
valha.
A Argentina está tão quebrada que nem
dolarizar de vez sua economia conseguiria agora. Claro, sempre é possível
tentar baixar um decreto lunático a respeito, que seria como mergulhar no mar
com uma bola de ferro amarrada nos pés.
Isso tudo é meio sabido. Mas, por aqui, se
dá de ombros. Décadas de crise recorrente e profunda tem levado de 30% a 40%
dos argentinos a se arriscarem com Milei. Outro colapso, seja por inação ou
pelos efeitos da correção, terá algum efeito econômico aqui, ainda que menor,
pois em parte nos descolamos dos vizinhos. Há mais, porém.
Os ares político-econômicos da região podem
ficar empesteados. Trata-se da Argentina, segunda maior economia da América do
Sul, ainda com nível de vida médio melhor do que o do Brasil, com tantas
possibilidades de avanço civilizatório. Mas o risco de coisa ainda pior por lá
é grande.
Pois é.
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